terça-feira, 18 de dezembro de 2012

REQUEIJÃO COM GOIABADA




Este blog destina-se a contar minhas lembranças de um passado distante, década de 1950, quando as famílias que quisessem educar seus filhos, teriam que envia-los para o internato, pois não havia escolas que fossem além das quatro séries iniciais em muitas cidades do interior. Esse era o tempo máximo de estudo para muitos que não tinham condições de enviar seus filhos para casa de algum parente na cidade, ou para o internato, como meus irmãos e eu frequentamos.

Já  fiz vários relatos de como era nossa vida no internato. É bom  que se diga que não era fácil! Viver longe da família, obedecer a regras rígidas... a convivência com outras meninas cada qual com sua personalidade, sua educação de berço... Era um exercício de acomodação ou adaptação em que se aprendiam na convivência, muitas vezes, quebrando a cara... Literalmente! Havia uma coleguinha que volta e meia metia uma tapa na cara de alguém. Não raro, no recreio, havia uma apartação de briga.

Algumas colegas tinham o péssimo hábito de furtar objetos alheios. Outras egoístas, não emprestavam nada e muito menos repartiam suas merendas.
As merendas que levávamos de casa ou que recebíamos das visitas, guardávamos em uma dispensa comum a todas as internas em uma espécie de baú individual, alguns com chave. Após as refeições, quem quisesse e tivesse algo ali guardado, poderia se servir e convidar as amiguinhas para compartilhar. Como tinha gente interesseira... Bastava saber que alguém tinha sido chamada ao parlatório (sala onde recebíamos visitas), e isso era um sinal de que a fulana seria presenteada com guloseimas, para as “amigas” se alegrarem! O motivo nem era pela visita que a colega estava recebendo e sim pelos doces que ela ofereceria...  Nessa hora era tanto  abraço, tanto beijo, tantos votos de amizade, bilhetinhos... Puro interesse!

Havia uma colega que recebia doces quase toda semana. Por mais que fosse adulada, ela só chamava para o “quartinho”, ou seja, a tal dispensa, quem ela bem entendesse. Sabíamos que ela tinha recebido goiabada  e requeijão e que nós, eu e Margarida, não estávamos na lista de suas convidadas. Pedir? Muito humilhante! Que fazer então para saborear aquela deliciosa goiabada acompanhada de um maravilhoso requeijão mineiro, daqueles feitos em casa no fogão a lenha! Estudamos os meios e fomos direto ao propósito.

A dona dos doces era intransigente, mas, não era esperta, ou melhor, era ingênua, deixava aberta sua caixinha com toda preciosidade dentro dela! Estava fácil! Sem problema! Mas... havia um sim! Como tirar um pedaço sem que ela percebesse e passasse a trancar a caixa? Bolamos então uma estratégia. A caixeta de madeira onde estava contida a  goiabada caseira tinha uma tampa que corria dentro de canaletas laterais da caixa. Ao puxar a tampa a caixa se abria só o necessário. Daí veio a ideia: se puxarmos a tampa toda, e começarmos a retirada do doce a partir da outra extremidade, ela vai demorar para perceber! Bem, quando a garota percebeu...
Foi assim que a famosa goiabada teve um final feliz!

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

AS EXTRAVAGÂNCIAS DA MADRE SUPERIORA


O Colégio atendia alunas em regime de internato semi-internato e externato desde os primeiros anos de vida escolar, isto é, alfabetização até o ensino médio, ou seja, o Curso Normal (Magistério) que era o estágio máximo de estudos que a maioria  das mulheres conseguia chegar.

Era muito precário o sistema de ensino; as cidadezinhas tinham cada qual o seu Grupo Escolar onde os alunos encerravam suas carreiras na 4ª serie. Raros, os que tinham melhores condições financeiras e que podiam arcar com as despesas das mensalidades no internato,  avançavam nos estudos. Para isso existiam colégios de cidades maiores, geralmente dirigidos por religiosos, homens e mulheres empenhados em educar a juventude,  que se congregavam sob um regulamento próprio. Cada congregação fazia seu currículo de acordo com as próprias conveniências. Até os livros adotados tinham a procedência de editoras próprias que suprimiam fatos históricos relevantes, mas que depreciavam sobremaneira a imagem da estrutura fundamental a Igreja Católica.

Havia colégios liberais, convencionais e rigorosos. Aos poucos  essas instituições  foram se modernizando,  não conseguindo  se manter, tiveram que se adequar. O fato é que os antigos internatos se transformaram abrindo espaços para outras atividades educacionais mais abertas, mas ainda carregadas de preconceitos e sectarismos.

O colégio  onde cursei as primeiras séries  era dirigido por um grupo de irmãs religiosas cada qual com sua função específica. A Madre Superiora cuidava da parte administrativa e a Madre  Diretora ocupava-se dos assuntos pertinentes ao ensino. Esta era famosa pelos seus gritos! Se  algo  fugisse aos preceitos disciplinares, de onde ela estivesse mandava um berro que provocava um sobressalto geral. Todo mundo morria de medo da tal irmã. A outra, a superiora, essa superava em extravagância. Quando cismava queria corrigir da maneira mais inusitada o que achava errado. 

Certa tarde, depois do recreio, a Irmã responsável tocou a campainha  chamando para  sala de estudos. Era o momento de preparar para a aula no dia seguinte. A irmã badalava a campainha e ninguém ia para a fila. Bateu uma, duas, três e nada... parecia que todas as internas  estavam surdas ... aí apareceu  na sacada a Madre Superiora. Quando percebemos que vinha bronca, tratamos de ir para a fila, quietinhas! Mas não adiantou... Daí a alguns  minutinhos aparece  a Madre com força total agitando a sineta, que devia pesar umas 300 gramas de puro bronze. Agitava com a mão esquerda, cansava , passava para a direita, foi revezando até cansar por uns dez minutos. Depois mandou-nos subir para a sala. Até aí, tudo bem, nada de falatórios nem sermões. Entramos na sala. Era costume  ao chegarmos na própria carteira, devíamos esperar até que a última entrasse  para fazermos a oração de pé. Depois então é que poderíamos assentar ou sair para outras atividades. Surpresas, achamos que estava tudo normal... não teve bronca... Foi quando ela pegou a campainha e a entregou para jovem que estava saindo para a aula de piano.

_ Toque! Disse ela. A moça sem entender pegou a sineta.
_ Toque, não sabe como se toca uma campainha? A moça agitou a sineta e a um gesto da madre passou para outra. Estávamos de castigo tocando sineta a tarde toda até a ultima garota da sala. Um detalhe: quem fizesse cara de riso ou crítica, tinha o castigo dobrado...

 As atitudes tresloucadas dessas irmãs que ocupavam lugar de destaque na direção do colégio  eram uma nota espetacular, motivo para comentários que rapidamente sairiam muros a fora.

Há pessoas a quem não importa o papel ridículo que representa diante do estrelismo de um momento.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O INCIDENTE DO NECROTÉRIO


Aos poucos minha vida voltou ao normal. Tive que me esforçar bastante para alcançar a classe. A minha recuperação se deu por completo e minha vida passou ao normal, sempre buscando novas atividades que pudessem minimizar aquela monotonia sufocante.
Certo dia, um alvoroço envolvia as meninas externas provocando nas internas, curiosidade e expectativa.  Soubemos então que havia um corpo  no necrotério. Falando assim, parece normal, porque é o local apropriado onde se colocam as vítimas fatais de acidentes até que sejam  liberados e resgatados pelas famílias.
O tal necrotério não era o IML de hoje com salas equipadas, refrigeradas, apropriadas; era uma salinha na entrada do cemitério. Na verdade, esse cemitério já se situava dentro da cidade bem próximo ao colégio. De algumas janelas do dormitório viam-se os túmulos, o que para a maioria das colegas era motivo de  apreensão e medo e... muita fantasia. Era frequente acordarmos com os gritos de alguma menina que fantasiava a aproximação de espíritos confundidos com a sombras em movimento  dos eucaliptos projetadas nas paredes. O cenário era ideal para a “imaginação solta” das internas. A proximidade do cemitério, a luminosidade dos postes da rua e a respectiva sombra das arvores, o vento sibilando e provocando batidas de janelas e vidraças... Bastava uma menina gritar para provocar pânico na meninada estendendo-se por todos os dormitórios. Umas gritavam por medo, outras entravam na onda por pura farra! A barulheira naturalmente acordava o colégio colocando as freiras em polvorosa!
Bem, no dia do incidente do necrotério, a curiosidade fez com que criássemos uma estratégia para burlar a vigilância e sairmos do colégio sem sermos notadas. Eram dois os portões que davam acesso ao colégio. Um servia de entrada e saída para as externas, o outro servia aos trabalhadores da obra de ampliação do colégio.
O plano era colocar uma colega bem grandalhona para conversar com a irmã que vigiava a saída das externas e passarmos despercebidamente como se fôssemos uma delas. Até aí tudo bem.
As complicações começaram com a exposição do cadáver naquele lugar. Grande número de curiosos se acotovelava para ver por segundos o objeto raro ali exposto. Entre a sala onde estava o defunto e o hall do cemitério havia uma escadinha  e uma porta de metal com a parte superior em grade possibilitando a quem tivesse altura bastante, visualizar o seu interior. Quando enfim consegui chegar à porta, vi que não tinha altura suficiente. Foi dando alguns saltos que consegui ver. E o pouco que vi me provocou desarranjo estomacal e uma imagem que se alojou em minha mente por muitos anos.
Contaram que era de um suicida aquele corpo  que ali estava exposto. Havia deitado sobre os trilhos da linha da Mogiana. O trem o degolou e partiu suas pernas. O que jazia sobre uma mesa era algo estarrecedor! O tronco nu, mutilado, branco como macarrão cozido, apenas cobertas as partes íntimas, a cabeça do lado direito e as pernas colocadas no sentido transversal...
Voltamos para o colégio sem maiores dificuldades, aproveitando a entrada de um carregamento de material que camuflou a nossa  passagem.  Era hora do almoço, a vigilância estava menos atenta.
Entramos no refeitório. Nesse momento, elaborei a maior associação de ideias, com consequências duradoras, para a vida toda. Sobre as mesas estava  uma travessa de macarrão branco. A associação foi perfeita e imediata. Saí correndo do refeitório em busca da “casinha” para desembaraçar-me do que estava revoltado no meu estômago.
Essa transgressão trouxe consequências desagradáveis para todas as que participaram. Impressionadas, o incidente por muito tempo foi motivo de pesadelos e muita gritaria no meio da noite...





 

 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

UM FINAL FELIZ (VI)


Imaginem o que é permanecer 15 dias deitada em cama de hospital com um dreno vazando o tempo todo, sem poder tomar banho completo... comendo uma gororoba sem sabor... com necessidade de me movimentar, correr, brincar... Comer um franguinho ao molho, feito no fogão caipira, com arroz e farinha. Ah! Que delícia! Era a minha preferência naquela época!
Na verdade, tinha saudade de tudo, da fazenda, das colegas, até do colégio! Meu consolo era  a presença paciente e acolhedora de Mamãe, dividindo comigo, é claro, aquela situação desgastante.
Quando recebi alta, surgiu novamente a indecisão e a discussão sobre voltar ou não para a fazenda. O bom senso determinou que eu ficasse em F onde eu teria a assistência médica e um tratamento adequado. Voltaria então para o colégio, para minha contrariedade. Naquele momento não me importava de perder o ano letivo, pois me sentia frágil, indefesa, sozinha!
A recomendação era para que eu ficasse em repouso absoluto, o máximo de tempo possível deitada do lado direito para que a secreção pudesse escorrer livremente até que terminasse todo aquele processo infeccioso.
Acomodaram-me na enfermaria no piso térreo do colégio onde eu ouvia a movimentação das meninas, a algazarra na  hora do recreio e recebia as visitas clandestinas das colegas.Não havia razão para a clandestinagem se não fosse proibido! Estávamos sempre prontas para burlar o regulamento, eram tantas as regras que para segui-las chegaríamos próximo à santidade. Esse foi o agravante para que me transferissem  para o dormitório.Trancado o dia todo,eu só podia ver  minhas colegas à noite quando iam dormir.Eu só recebia a visita de algumas colegas para me passarem o conteúdo das aulas. Não sei por que fui colocada sob esse regime... não estava com nenhuma doença contagiosa... Imaginem como eram longos os dias... e as noites...Dormia muito durante o dia e à noite ficava insone olhando o balançar das árvores na janela.
Hoje tenho as respostas para a minha submissão a essa disciplina. Era cultural e natural obedecer. Obedeciam-se  aos pais, aos irmãos mais velhos em casa, aos professores, às convenções sociais, ao marido e por último aos filhos... Nunca se rebelar, nem se posicionar contra essa ou aquela ordem. Assim me sujeitei passar meses naquela situação.
Recebia a visita do medico regularmente  até quando ele tirou o dreno. A ferida foi cicatrizando ao  comando da própria natureza.
Há males que vêm para o bem. Nesse tempo fiquei conhecendo umas primas de papai que moravam em frente ao colégio. Eram, a mãe já bem idosa e três filhas solteiras já  quarentonas. Pessoas maravilhosas, uma mais carinhosa que a outra,  se prontificaram a me abastecer de frutas e  guloseimas. Todos os dias me mandavam uma copada de vitamina. Eu ficava ansiosa  para chegar a hora em que tomaria a deliciosa batida de frutas com leite.   
Até que enfim a ferida cicatrizou completamente e pude sair do “castigo” e  frequentar as aulas. Fui dispensada da  missa todas as manhãs e do terço à noite, para inveja das colegas. Meu horário era diferenciado, deitava cedo, e levantava mais tarde. Tinha sempre alguém para me acompanhar no banho e uma das normalistas para me ajudar com os deveres de casa. Na verdade, estava me sentindo bem paparicada!
Este  drama vivido por mim na minha infância me ensinou a valorizar as pessoas, a ver a família com os olhos do coração quando ela sofria comigo as minhas dores; pequenas coisas, que  entre a abundância em um momento e a carência no outro, me fizeram refletir e avaliar o quanto eu estava sendo amparada e protegida nos dois planos da vida. Para que eu sobrevivesse, uma verdadeira batalha foi travada, com um final feliz para todos, graças a Deus!

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

DE VOLTA PARA O HOSPITAL (V)


Meu estado geral estava cada vez mais debilitado, ao contrário do que se esperava. Começava sentir dores que foram se acentuando até que uma noite, comecei a gemer e chorar, não conseguia dormir... Minhas irmãs que dormiam no mesmo quarto que eu, chamaram a mamãe. Sem saber o que fazer, na tentativa de aliviar a minha dor,  puseram-me numa bacia com água quente, deram-me analgésicos,  fizeram compressas,  chás... nada resolvia!
Começaram então os preparativos para o retorno ao hospital.
Naquele momento, no estado em que me encontrava de fraqueza e dores intensas, buscava refúgio no carinho e atenção de minha  irmã Teca, minha madrinha de Crisma, a quem eu chamava de Midinha. Minha irmãzinha querida que já partiu para outro plano, se desdobrava em atenções procurando me dar conforto com seu carinho, cobrindo toda minha carência afetiva do momento! Quem já passou por uma dor física  muito grande, um sofrimento intenso, entende o valor do aconchego amoroso, dos cuidados, da atenção! Não alivia a dor, porem conforta, protege, ampara! Era o que eu mais precisava no momento!
Considerando as dificuldades que eu bem conhecia, o meio de locomoção, a distancia        de mais ou menos  60 km de estrada de terra péssima, eu sabia que o pior estava por vir; a viagem seria um deus-nos-acuda. Os buracos e empecilhos naturais de uma estrada de chão, não permitiriam uma marcha mais acelerada. Sabia que apesar de toda boa vontade dos meus familiares, todo desejo de me proporcionarem conforto, aquela seria uma experiência dolorosa na minha vida.
De madrugada ainda, prepararam um jeitinho no jeep onde eu pudesse viajar deitada para que  eu tivesse mais conforto e não sentisse tanta dor.  Saímos. Mamãe como sempre, rezando, me confortando e chamando a atenção do papai para que tivesse paciência comigo...
Meu maior desejo era ficar livre daquele incômodo o mais rápido possível, por isso, procurava me controlar, manter-me em equilíbrio sem gritar, embora essa fosse a minha vontade. Deveria me manter firme sem reclamar porque assim fui educada, não deveria dar motivos para que papai ficasse nervoso. Que viagem longa! Era uma situação em que a cada buraco da estrada a trepidação mexia com minhas vísceras e a minha impressão era de que meu abdome ia estourar tal tensão que havia. Eu ainda encontrava energia para segurar a barriga na esperança de encontrar meios de sofrer menos. Mudava constantemente de posição, chorava, me mordia, mas, nada trazia alívio. Até que enfim chegamos. Uma maca veio para me levar para a emergência onde fui examinada. O médico, o mesmo que fez a cirurgia, veio querendo apalpar minha barriga. É claro que não deixei! Ninguém podia me tocar!  Daí para frente não presenciei mais nada. Deram-me sedativos que me apagaram, mas eu me lembro que continuava  sentir dor.
Quando acordei estava no quarto,  deitada do lado direito, sentindo um desconforto como se tivesse feito as necessidades na cama,  com uma poça de um líquido amarelado, com mau cheiro do lado dos meu quadris. Sem compreender o que estava se passando chamei a mamãe apavorada para me explicar o que era aquilo. Ela disse:
_ É pus, minha filha! Está saindo da sua barriga...
Naquele momento senti uma vertigem, a vista escureceu, se não estivesse deitada teria caído!
Mamãe  me contou então, que havia sido operada de novo e que ao toque do bisturi na cissura, o pus que estava represado no meu abdome ao se ver livre, espirrou com tanta força que alcançou as pessoas que estavam à minha volta, médicos e enfermeiras até as paredes da sala de cirurgia.
Soube mais tarde que a infecção tinha se formado entre as duas películas do peritônio, para minha sorte, se não, eu jamais poderia estar aqui contando essa minha experiência.  

sábado, 25 de agosto de 2012

EXPECTATIVAS... (IV)


Os  três últimos contos, A cirurgia, A tumultuada comunicação e O arriscado trajeto, deram início à saga envolvendo meus familiares, as irmãs do colégio, o motorista do carro, sem falar no transtorno por motivo das festividades  que estavam por ocorrer no Colégio,  em que as irmãs tiveram que dividir comigo, o tempo e as preocupações.
A viagem da cidade de I  para F transcorreu dentro da normalidade apesar do tempo, porque continuava a chover.
Havia passado dois dias após a cirurgia, e eu no hospital,  já sabia que minha família tinha sido avisada e que Mamãe  chegaria a qualquer a momento. Estava para explodir de saudades!  Chorava muito, não queria comer. Estava aborrecida com tanta injeção, tanto comprimido um deles era enorme, tinha um gosto muito ruim. Na peleja para engoli-lo acabava por de dissolver na boca, uma tragédia! Aí vinha o vômito; nessa hora a barriga doía, não podia fazer esforço com a musculatura do abdome.
Mamãe e Rubens entraram no apartamento do hospital justamente no momento em que abrindo os olhos, após uma soneca, vi  a imagem mais linda e querida que pude gravar em minha mente! Nada havia que eu quisesse mais, que não fosse a presença de mamãe ao meu lado! Que alegria! Que ternura! Para minha satisfação, não fosse pelos incômodos, diria que foi o momento mais feliz de minha vida!
Fui muito paparicada... Toda hora tinha visita! Eram as irmãs do colégio, as colegas de classe... Até as internas tinham permissão para me visitar!
Chegou o dia da alta. Papai iria buscar a mamãe e discutir o que seria melhor pra mim. Ficar de vez no Colégio me recuperando ou ir para casa passar uns dias na fazenda. O consenso optou pelo último. Eu estaria com a família sob cuidados especiais, muito ar puro, alimentação saudável, etc. Dificilmente eu teria melhores cuidados a no internato. Todos esperavam uma recuperação  tranquila.Foram prescritos os devidos cuidados com a medicação, alimentação, repouso... Lembro-me da recomendação de fazer breves caminhadas e ter atenção com a postura. Quando o corte é no abdome, a tendência  das pessoas  é curvarem-se para a frente. Meu pai tinha muita energia quanto a isso, estava sempre me corrigindo!
Entretanto eu não estava disposta a andar. Não queria fazer nada... Mamãe fazia as comidinhas que eu mais gostava, mas, nada me apetecia... Comecei a dar preocupação. Todos esperavam  inclusive eu, que a cada dia eu demonstrasse maior disposição, e me entusiasmasse com as coisas ao meu redor... mas meu corpo não queria, estava pesado... Um abatimento muito grande tombou sobre mim e comecei a sentir dor... Muita dor!
Teria sido melhor se eu tivesse feito minha recuperação no colégio,  onde teria a assistência médica caso precisasse?Teríamos evitado transtornos,  sofrimentos e preocupações.
Muitas vezes tomamos as decisões que nos parecem acertadas,  decorrentes de um consenso lógico, todavia, somente Deus sabe o que nós precisamos passar como reajuste das nossas próprias deficiências espirituais.
Infelizmente, ainda não será dessa vez o desfecho desse episódio. Em respeito ao tempo do leitor, considerando que ainda tem relatos extraordinários, que ultrapassariam os limites que eu defini como  relevantes para uma leitura no mínimo,  rápida, decidi por fracionar esse caso. Obrigada.      
  

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O ARRISCADO TRAJETO (III)


A chegada do Rubens a cavalo na fazenda, como não poderia deixar de ser, provocou em todos da minha família, os  que lá estavam,  muitíssima estranheza.  As perguntas, as mais diversas, foram feitas de uma só vez. Que você esta fazendo aqui? Fugiu do Colégio? Como  você veio?Quem te trouxe? O menino não conseguia falar tal a comoção do momento. Até que papai com sua voz possante bradou:  Deixem ele falar!
O menino contou toda história. A minha operação e a dificuldade de comunicação. Entregou a carta das freiras relatando as providências tomadas. Disse também que havia um carro à espera do outro lado da ponte e que esta estava parcialmente destruída.
Rapidamente foram tomadas as providências: mamãe iria no carro que estava aguardando, junto com o Rubens. O outro meu irmão, o João que já passava dos vinte anos, os levaria no jeep  até o local.
As ordens foram distribuídas para que os  preparativos fossem feitos; uns cuidar  dos documentos, dinheiro;  roupa, mala e a janta para o Rubens e o motorista.Tudo preparado com o mínimo de tempo possível porque não tardaria a anoitecer e o motorista, coitado, estava há horas sem se alimentar.
Foi preparado um farnel com a provisão necessária para não passarem fome, caso tivessem que passar a noite na estrada: água, a marmita com a refeição do motorista, frutas, uma garrafinha de café, biscoitos, bolo...  
Minhas irmãs, Teca e Maria I, ficariam com papai tomando conta da casa.
Ao chegarem nas proximidades do local, João percebeu que teriam dificuldades para atravessar com a mamãe. Havia uma descida íngreme  com lama, e da mesma forma do outro lado da ponte, uma subida ainda mais inclinada e escorregadia. E como não bastasse esse problema, havia um enorme rombo no assoalho da ponte. Em grande parte dela as vigas estavam expostas. A grande pergunta: mamãe conseguiria se equilibrar?
Como não poderia deixar de ser, Mamãe, religiosa como era, arrancou o terço da bolsa e começou a rezar... Ela estava muito apreensiva com tudo o que estava acontecendo, não era possível desistir àquela hora, já quase escurecendo... Por outro lado, supondo que transporiam esses obstáculos, quem poderia garantir uma viagem tranquila visto que a noite aproximava, o motorista  cansado, a estrada continuava ruim com os mesmos buracos,  poças e lama que  provavelmente teriam aumentado... Foi refletindo assim, intuída naturalmente,  que ela  decidiu que o João deveria atravessar, levar a janta para o motorista e um pouco de dinheiro em sinal de adiantamento e pedir a ele que voltasse até a cidade de  I, ali se hospedasse numa pensão e os esperasse no dia seguinte para seguirem viagem.
De onde eles estavam não se podiam ver se o carro ainda estava lá os aguardando. A estrada do outro lado, além de íngreme era também sinuosa, contornava o barranco logo após a ponte, sempre em curvas ascendentes. Rubens gritou seu nome várias vezes, nada do senhor responder...  João resolveu ir verificar. Pegou marmita,  dinheiro e o endereço da pensão e um facão que sempre carregavam no jeep. Atravessou e subiu morro acima do outro lado da bendita ponte. Chegando lá encontrou o carro atolado e o motorista dormindo. Meu irmão se apresentou passando-lhe a marmita pedindo desculpas pelo transtorno e passou-lhe as instruções. Enquanto o homem jantava, João foi cortar alguns galhos e procurar pedras para desatolar o carro.
Enquanto isso a noite chegou. Com muito trabalho conseguiram desatolar o carro, e o senhor a contragosto seguiu para a cidade. Os meus voltaram para a casa, para alívio de todos os que ficaram.
No dia seguinte, de madrugada, saíram, desta vez com papai. Pegaram  outra estrada que  dava  volta de vários quilômetros, porem sem sobressaltos. Era uma via intermunicipal, embora de terra, era melhor cuidada.
Em I encontraram o senhor esperando na pensão com cara de poucos amigos, porém com meia dúzia de palavras, papai o acalmou.
Na verdade não precisava mesmo muita pressa... eu já tinha sido operada e estava passando relativamente bem, embora com uma vontade louca de ter a Mamãe ao meu lado...
No próximo post terminaremos este episódio.


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A tumultuada comunicação (II)


A modernidade trouxe para o mundo em termos de tecnologia da informação, as mais avançadas invenções na arte de comunicar. Não há necessidade de enumera-las, visto que todos as conhecem.  Extremos  intercontinentais não são barreiras para se entabular relações, desenvolver negócios, transmitir notícias em tempo real.
Na década de 1950, época em que se deram os fatos que estou narrando, não era assim. Havia sim telefone, o meio mais rápido de comunicação. Entretanto, poucas eram as casas que possuíam um aparelho. Era complicado fazer interurbanos. Estes eram feitos via telefonista e contar com a boa vontade dela para chamar quem não tivesse o aparelho em casa. Um moleque de recados estava sempre disposto a ganhar uns trocados. Mas, quando a chamada era urgente para alguma fazenda,  a melhor providência seria um taxi ou carro de praça como era chamado na época.
A confirmação da minha cirurgia trouxe para as irmãs novas preocupações e problemas. O colégio, por meio de seu representante legítimo, assumiria todo encargo junto ao hospital e à família.
 No primeiro caso, a solução era de ordem prática, bastavam algumas assinaturas e tudo estava resolvido! No segundo, a providência seria avisar a família, o que parecia complicado dado a exiguidade dos meios de comunicação  sabendo-se que meus pais moravam na fazenda. O que as irmãs não contavam era com a falta de informação  da minha ficha onde havia só o endereço postal de uma fazenda, nada mais!
 Uma carta? Nem pensar! Demoraria uma semana ou mais...    Os Correios de cidades de interior não ofereciam serviço de entrega de correspondências. Essa era uma providência  descartada...  Telefonema? Como? Ligar para onde? A fazenda não tinha um aparelho. Poderia usar o sistema via telefonista. Do Colégio para a central  de F, pedir ligação para o centro telefônico de I, (cidade mais próxima da fazenda de meus pais) pedir então que a telefonista enviasse alguém até a fazenda com o comunicado.
Tudo bem se não fosse por dois detalhes importantes: chovia muito e a estrada de terra era horrível, todos os motoristas se admiravam da coragem do meu pai em aventurar-se por ali. A telefonista não conseguiu quem se dispusesse a tal façanha...
Estaca zero! Melhor seria mandar alguém com uma carta... mas e o endereço da tal fazenda? Era temerário fazer uma viagem rumo ao desconhecido sabendo-se que iria enfrentar chuva e muita lama... Foi quando alguém se lembrou dos meus irmãos que também eram internos em outro colégio só para meninos, na mesma cidade.
Até que enfim, uma luzinha se acendia no final daquele beco!
Puseram  meu irmão Rubens num taxi e lá foi ele com a incumbência de dar a notícia aos meus pais e mostrar o caminho ao motorista que após passada a minha cidadezinha I, percebeu que a estrada que não era das melhores, estava agora piorando... O homem já começava a reclamar e entender que tinha entrado numa roubada...
Meu irmão, firme, procurava não dar a entender a sua preocupação! Estava levando uma notícia de tal gravidade  e aquele homem insensível reclamando... Armou-se  de bom-senso e procurou distraí-lo com anedotas, casos da fazenda, do colégio... Conversa vai... conversa vem... desvia daqui, atola ali, e vamos em frente... até que, no ponto crucial da estrada, já nas terras de papai,   numa descida antes de uma pontezinha de estrada de fazenda,  o motorista desceu do carro e percebendo que o problema era bem mais sério que imaginava, deu um murro no para-lama falando um palavrão.E repreendendo  o pobre garoto, resolveu que voltaria dalí mesmo.  Meu irmão então tomando ares de empregador disse:
_ O senhor só vai receber a corrida, se me levar de volta para F... E eu só retorno depois de cumprido a minha tarefa! O senhor escolhe... E falando, foi descendo. Quando chegou à ponte viu que era mesmo impossível qualquer carro passar. A ponte estava danificada pela chuva. Atravessou, subiu do outro lado e pensativo rezou para que tudo desse certo.
A chuva já tinha passado, mas o tempo continuava fechado. Rubens tomou um atalho entrando em um pasto onde alguns animais pastavam. Nesse momento percebeu a ajuda do Alto que havia pedido. Com um assovio chamou um dos cavalos que o conhecendo veio até ele. Em pêlo, isto é, sem os apetrechos de montaria, montou no cavalo e saiu galopando.
Foi assim que, depois de muitos obstáculos, a comunicação entre as irmãs do colégio e minha família, foi estabelecida.  

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

A cirurgia (I)

Os relatos iniciados aqui  com A cirurgia fazem parte de uma série de posts  que vou enumerá-los para que o prezado leitor faça ligação de um acontecimento  com outro não perdendo a sequência dos fatos.

Provavelmente o fato que descreverei agora, muito tem a ver com a carência alimentar sofrida  por  intolerância ao que era servido como refeição às internas do colégio. Por mais fome que eu tivesse meus sentidos não se esforçavam por estabelecer empatia com aquelas iguarias exibidas sobre as mesas do refeitório. À visão daquele fígado azulado e do feijão gelado provocava em mim tamanho asco que no mesmo instante meu cérebro passava a mensagem  para o estômago provocando  reviravoltas que com  muito esforço conseguia dominar.
 Depois de algum tempo me alimentando mal, meu organismo baixou a guarda e as consequências foram danosas para meu corpinho de adolescente.
Certo dia, o colégio estava em preparativos para evento; todas as internas estavam envolvidas com a arrumação e designadas para  ocupações de arrumação e decoração do pátio interno onde seria armado um palco. A movimentação era intensa. Umas cuidavam de lavar o piso e limpar as janelas, outras carregando cadeiras e mesas para compor o ambiente e outras ainda cuidavam da decoração.
Eu escolhi um trabalho que considerava leve, não estava com disposição para o trabalho pesado. Meu serviço seria desgalhar o cipreste, retirar os ramos menores, o que poderia fazer assentada  no chão atrás de um monte de galhos. Eu olhava aquela movimentação toda me sentindo apática, sem ânimo, indisposta. Meu corpo queria repouso... e ali mesmo atrás dos galhos me deitei  e deixei o sono tomar conta... mas por pouco tempo porque logo alguém veio e me descobriu ! Fiquei  muito envergonhada e atrapalhada retornei ao serviço. Estava ficando cada vez mais indisposta, parecia que minha cama me atraía! Resolvi então abandonar o trabalho e atender ao chamado! Subindo as escadas que davam para o dormitório, minhas pernas não obedeciam, e ali me deitei novamente, quando percebi que havia ainda alguns obstáculos a serem  transpostos : os degraus restantes, a porta que poderia estar trancada, o percurso dentro do dormitório até chegar à minha cama...  não tinha forças para tanto...
Naquele horário ninguém  tinha hábito de subir ao dormitório, e eu ali fiquei sem que dessem por minha falta.  Eu ainda não tinha atinado  para o que estava acontecendo comigo. Não sei por quanto tempo fiquei ali deitada na escada... até que apareceu um anjo bom, por sorte, a irmã enfermeira que percebeu de imediato que algo errado estava acontecendo  comigo.
Quando acordei estava rodeada pelas irmãs  com olhares preocupados e um senhor de branco que me apalpava a barriga. Nessa hora,  gritei de dor!
_Apendicite!  Falou ele. Operar imediatamente... Se não, pode supurar.
A movimentação que já estava intensa aumentou ainda mais. Ambulância, paramédicos, enfermeiros, maca... e eu entregue, chorando, clamando por mamãe!... Para mim,  só a presença dela era suficiente para me livrar daquele desconforto! Chorava de dor física, de solidão, de saudade... de angústia, de medo, muito medo!!!!!
Fui levada para o hospital e a cirurgia foi feita imediatamente à revelia da presença de meus pais.
 Os desdobramentos  consequentes desse fato darão espaço para novos episódios... Aguardemos...


sábado, 4 de agosto de 2012

O pão nosso com sardinha de todos os dias


A vida no internato era cheia de altos e baixos no que se refere ao estado de espírito das internas. Nem sempre era diversão...  Tínhamos  momentos alegres e até felizes! Mas, havia também  ocasiões de  melancolia,  em que o sofrimento  tinha como causa essencial, a carência afetiva, a falta da família, as lembranças, quadros da fartura, da comida gostosa, da liberdade... Não era raro depararmos com coleguinhas amuadas pelos cantos chorando de saudades de casa. Acontecia que ao consola-la, caíamos no choro também. Era contagiante...
 Isso sempre se dava em momentos de recolhimento, na capela ou no dormitório quando o silêncio era absoluto. Eram as ocasiões em que se evocava a imagem  da família reunida, o aconchego do lar, as carícias dos entes queridos principalmente a mãe... Ah! Como tudo isso era doído! A saudade tinha um gosto amargo, era como um punhal penetrando no peito! Uma dor que fecha a garganta...  o choro pungente que dilacera a alma! Dor semelhante, imagino eu, à  das crianças  amontoadas nos orfanatos que só é maior porque a única coisa que sabem é que não têm um lar e ninguém que as esperem ou que preencham suas esperanças ou ainda, não têm de quem sentir saudade...
À medida que avançávamos em idade progredíamos em solidariedade, tornando-nos mais amorosas;  revezávamos no papel de mãe, de irmã mais velha, e bancávamos as protetoras umas das outras.
O meu grupo era formado por quatro meninas. Uma mais velha que eu, a Margarida, garota inteligente, pouca conversa, astuta, sabia tudo, com um lance de olhar interpretava o que se passava ao seu redor, por isso era a líder. As duas outras eram gêmeas, Lívia e Olivia. A Margarida era amada por todas, mas, tinha  ligação mais forte comigo e eu com ela.  Olívia gostava de todas por igual tinha boa índole era companheira para todas as horas. Já a Lívia tinha o gênio forte, era ciumenta e egoísta. Brigava por qualquer coisa, muitas vezes foi ameaçada de ser expulsa do grupo, por causar intrigas, sempre comigo. Não perdia a oportunidade de me alfinetar. Mas todas estavam prontas a agasalhar umas às outras em qualquer situação.
Valores como tolerância, repeito, amizade, sinceridade, companheirismo e desapego eram desenvolvidos em nós, porque tínhamos que impor um ambiente que amenizasse as condições de amargura impostas pelo regime. Tínhamos que suprir as carências uma das outras.
Nosso grupinho de quatro acabou se desfazendo quando no semestre seguinte as gêmeas não voltaram. O colégio perdeu muitas alunas e o internato entrou numa situação de recessão que foi difícil aguentar.  Para economizar água, o tempo do banho era cronometrado. Tempo para se molhar, ensaboar e enxaguar. A irmã dava o sinal para começar e finalizar cada movimento.
 A alimentação estava intragável, mal feita, fria, sem tempero. O café da manhã era servido às 7hs.  e o almoço ao meio dia. No intervalo quem tivesse grana podia comprar lanche na cantina, quem não tivesse, ficava com fome.  
Fazíamos fila para tudo. Tínhamos que esperar todas as alunas chegarem para entrarmos para o refeitório. Essa espera era a desculpa para que comida posta na mesa esfriasse. A torcida era para que a gororoba estivesse com melhor aspecto e variada, já que todos os dias eram os mesmos pratos: arroz, feijão, bife de fígado e salada de alface com tomate. Tudo bem se o arroz não fosse “unidos venceremos”  o feijão mais quentinho e o bife não apresentasse uma natinha esverdeada denunciando as horas que estava servido.  
Eu olhava para aquilo e nem me assentava à mesa. Não podia compreender como as colegas conseguiam comer aquilo... passei então a pedir pão à copeira. Comer pão puro? Aventurei pedir café ou açúcar. Quando não tinha café, o açúcar era bem-vindo. Abria um buraco no pão, colocava o açúcar e molhava com água para ficar mais fácil de engolir.  
Tudo ia muito bem até que trocaram a copeira e não pude mais comer um pão inteiro no almoço. Passei então a dividir o pãozinho do café da manhã; deixava a outra metade para comer no almoço com açúcar molhado.
Para fazer economia, as irmãs começaram a fabricar o pão nas dependências do colégio. E o pão foi encolhendo...
Um dia, nos reunimos e fomos reclamar com a Madre Superiora. Ela faltou chorar, reclamou das inadimplências e que ela não poderia dispensar as alunas que estivessem em falta com as prestações. O motivo real não era bem esse... Era o desvio para  outro projeto da direção.
A  providência tomada foi aumentar um lanche entre o café e o almoço. Então começaram a servir pão com sardinha... todos os dias! Eu queria morrer!
Escrever aos meus pais, reclamar, botar a boca no trombone... Nem pensar... as cartas eram censuradas,  lidas pelas irmãs. Se elas encontrassem algo que denegrisse a imagem do colégio, mandavam corrigir.
A situação estava insustentável quando a Margarida bolou uma forma de nos alimentarmos com algo mais substancioso. Guardávamos a  banana da sobremesa, amassávamos com leite condensado e leite em pó. Era uma delícia!Ela tinha conta  em uma farmácia onde comprava por telefone. Por muito tempo, essa foi a minha refeição do dia. Minha amiga Margarida, Deus lhe pague pela sua afeição e solidariedade.
Minhas  reservas nutritivas conseguidas  enquanto em casa, na fazenda com a fartura com que fui criada, estavam no limite... Logo meu organismo denunciaria a desnutrição... mas isso será assunto para  a próxima postagem!

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A lagartixa e o capetinha


A vida rotineira do internato traz muita comoção interior por ter que seguir um regulamento rigoroso onde todos devem seguir as mesmas orientações os mesmos horários rígidos, disciplina... disciplina...disciplina. Todas  as atividades  eram realizadas em silêncio. Uma sineta ou campainha marcava a movimentação que  deveríamos fazer para passar de uma  a outra ação imediata. Se estivéssemos em meio a uma tarefa, deveríamos  suspende-la  e irmos para a fila em silêncio.
 O recreio significava liberdade. Em dois momentos após as principais refeições, tínhamos  certa liberdade. Podíamos brincar, conversar ou jogar dama, torrinha ou outros joguinhos de menor movimentação. A criatividade para as artimanhas é característica da idade. Então a vigilância era acentuada sobre os grupinhos que preferiam conversar. Isso pelo temor de que  as irmãs tinham de estarmos tramando algo inconveniente. Qualquer  tipo de reclusão convida à insubordinação e não era diferente para as internas de um colégio de freiras. Sair da rotina imposta por um regulamento sufocante era um desejo impreterível, não se podiam deixar passar a oportunidade...
 Qualquer ato menos lícito tinha que ser combinado de forma que não deixasse suspeitas. Por isso os grupinhos eram fechados. Para se admitir um novo membro colocava-se em votação. Tínhamos um acerto de fidelidade, cumplicidade, confiança e proteção entre os membros do grupo. Uma liderava e as outras colaboravam com criatividade, astúcia e ação. O que fosse sugerido pelo grupo, todas tinham que participar, antes, porém era debatida e votada a proposta.
Muitas vezes nos vimos em situações perigosas em que seríamos apanhadas se não tivéssemos  o pacto de fidelidade. O fato de ser pega em situação de culpa  era tão comprometedor perante o grupo que não cabia autodefesa.  Quem fosse pega em infração deveria sofrer sozinha as consequências  até que nos reuníssemos para deliberar o que fazer. Nem sempre tínhamos tempo para isso, então um simples olhar era o suficiente para o entendimento e a líder tomava sozinha a deliberação o que seria seguida por todas.   Geralmente todas se acusavam, passavam por algum castigo, baixava a nota de comportamento e perdíamos  os passeios, as saídas  de final de mês  o que era raro. Afinal, as irmãs também precisavam de um descanso nem que fosse por um final de semana.
Um dia, uma das colegas encontrando uma largatixa  resolveu aprisiona-la. Levando-a  ao grupo, resolvemos que pregaríamos uma peça em alguém. Tinha que ser uma pessoa muito chata, que merecesse ser “castigada” por nós, o que nos daria imenso prazer de ver passar por uma atitude ridícula. Quem seria a vítima? O animalzinho não poderia ficar por muito tempo preso... tínhamos que agir rápido. A ação deveria então ser naquela noite em que todas as internas estivessem na sala de estudos, em silêncio, cada uma cuidando de suas tarefas  e a irmã tomando conta na frente assentada à uma mesa sobre um estrado pequeno de madeira que mal dava espaço para as duas peças. Para nossa sorte a irmã que ocupava esse lugar naquele dia era uma das mais aporrinhadoras.
Num dado momento a líder do grupo fez um sinal e nos levantamos todas  e fomos até à mesa conversar com a irmã a título de pedir ajuda para alguma tarefa. Nessa hora a colega abriu a caixinha atrás da irmã e a largatixa pulou e tentando se esconder, enfiou-se no meio de tanto pano que compõe o hábito das freiras. Sentindo-se solta, a bichinha começou correr e se atrapalhar no meio das capas e a irmã desesperada se debatia e pulava. A coitada  teria caído do estrado, se não estivéssemos perto para socorrê-la. Foi uma situação hilariante e ainda tiramos onda de heroínas ao salvarmos  a inocente irmã.
Não  conseguíamos  parar de rir; aquele riso abafado de quem não queria demonstrar falta de respeito. A irmã tentou naturalidade  mas, a situação ficou insustentável. Abrimos às gargalhadas.
 Ao sairmos dali, fomos para  a capela rezar o terço. Local exato para o “capetinha” insuflar o mal. Bastou que uma começasse a rir para as outras a seguissem. Ninguém mais rezava, eram só os roncos abafados dos risos presos. Algumas meninas não puderam se   conter  e fizeram  xixi nas calças...
 Ninguém percebeu a trama... a travessura ficou na história do internato por muito tempo. O bom é que ninguém soube de onde saiu a tal lagartixinha!  

sábado, 28 de julho de 2012

A superação


A busca por um melhor lugar ao sol é próprio do ser vivo. A planta na ausência de  luz se estira  entorta e contorce à procura da claridade. Os animais se aconchegam uns aos outros à procura de calor. O ser humano não é diferente, está sempre à procura do que lhe falta. Amor, carinho, compreensão para uns,  para outros o status, a posição de comando... Ainda a outros só o dinheiro e tudo aquilo que ele proporciona e representa, basta!
Naquele momento, na fase de adaptação na outra sala de aula, eu fazia parte dos seres humanos desprovidos de afeto! Na minha carência sentia-me  sozinha, confusa, cheia de medo! Tudo me era estranho, nada se parecia com aquilo que sonhara noites a fio na fazenda...  via-me no colégio cercada de coleguinhas, brincando, fazendo traquinagens...
A realidade era bem outra...
Fui acolhida na outra sala com atenção, mesmo porque todas as alunas e a professora presenciaram a minha desventura e ficaram angustiadas. A  irmã que agora seria minha professora e as novas coleguinhas, acolheram-me tão bem que aos poucos fui esquecendo os maus tratos sofridos e passei a me interessar pela sobrevivência naquele lugar inóspito. Minha coleguinha Margarida foi a grande responsável pela minha adaptação. Foi ela quem me orientou quanto aos cuidados pessoais, como manter meus pertences guardados em ordem, a fazer silêncio sempre que não estivéssemos em recreio...etc.
Com o tempo passei a receber elogios nas aulas porque tinha desenvoltura para ler e escrever. Entretanto, quase tudo o que “dominava” estava fora do currículo. Matérias como geografia e história que eu havia estudado em casa estavam completamente fora do currículo.Conhecia  o Mundo mas não sabia nada sobre São Paulo. Tive que estudar bastante! A Irmã Sacrário, aquela adorável criatura, compreendeu que eu só precisava de um empurrãozinho para conseguir  me igualar à turma. Empenhou-se em me auxiliar nos seus momentos de folga. Margarida ajudava-me nos deveres de casa, e nos apegamos muito.
Aquele ano letivo transcorreu sem maiores incidentes. Rapidamente alcancei a turma, adaptei-me ao currículo, transpondo os obstáculos sem maiores incidentes.
 Durante todo o semestre, recebi apenas três visitas dos meus pais. Apesar das saudades, eu compreendia que era difícil a visita constante da minha família. Morávamos não tão longe, mas o acesso era difícil. Estrada acidentada de terra batida, uma dificuldade! No período da chuva era a lama, na seca, a poeira...  
No final de cada mês as internas que tinham bom comportamento podiam  passar o final de semana em casa. Eu só saía nos feriados maiores tipo Semana Santa. Em compensação nós que ficávamos íamos brincar na chácara das Irmãs em frente ao colégio.  Essa chácara era o lugar de recreio das freiras onde elas jogavam vôlei ou  outro tipo de competição com bola. Da janela do dormitório podíamos vê-las na maior “farra” gritando e correndo na maior alegria. Eu gostava de ver... Desfiz o mito da esposa de Cristo recatada que vivia em oração fazendo tudo muito certinho! Sentia que elas eram pessoas normais que viviam em reclusão por vontade própria para servir a Cristo através da doação de si mesmas! Eram pessoas comuns com  algumas virtudes e  muitos defeitos, entre os quais o preconceito.
O tratamento dado às alunas mais abastadas era diferenciado das  pobres; nem mesmo entre as  ricas se viam negras. Uma única exceção, a Negô, uma das primeiras alunas, quando o colégio estava iniciando  como internato. Não raro acontecia de convivermos com meninas com problemas mentais graves ou com outras doenças nervosas como a epilepsia, que exigia de nós muita compreensão e desenvolvimento do senso de tolerância. Era fácil perceber que as famílias contribuíam para que essas alunas fossem aceitas e  que tivessem um tratamento diferenciado. Eram todas brancas e abastadas.
Apesar da rotina, a  cada dia vivíamos a expectativa de um incidente para movimentar os ânimos, ora uma briga, ora um ataque nervoso e ainda uma repreensão pública ou castigo. Sempre algo que dava motivo bastante para comentários e fofocas! Uma experiência de vida que fortalece e estimula a convivência com as diferenças!

segunda-feira, 23 de julho de 2012

DEPOIS DA TEMPESTADE, A BONANÇA


Aquele longínquo e fatídico dia da minha infância jamais foi esquecido.
O bullying moral  sofrido no primeiro dia de aula na minha recém-chegada ao internato, a humilhação por descer tão baixo no conceito daquelas pessoas, baixou a minha autoestima a níveis desprezíveis. Aquela mulher imensa, a quem atribuíam o título de professora, vestida de amarelo que mais parecia uma manga madura... aquelas risadas sarcásticas, estridentes... aquele momento de extrema solidão e nostalgia, causaram-me desarranjo interno, fogueamento no rosto, bambeza nas pernas... senti que algo dentro de mim pedia urgentemente para ser posto para fora! Jamais havia passado por situação semelhante! Nunca havia sentido tamanho desconforto... minha primeira lembrança naquele momento, foi minha mãe, a quem recorria sempre nas situações  complicadas, mas ela não estava ali...
No momento seguinte, que para mim, pareciam horas,  dei-me conta de que estava em outra sala de aula agora com outra professora, uma irmã, linda, sorridente, carinhosa que percebendo meu constrangimento levou-me até ao banheiro. Sentei-me no vaso, desfiz do incômodo e chorei... desabei no choro convulso que me doía o peito! Sentimentos exacerbados, confusos, experimentei naqueles minutos... raiva, ódio, rancor, desespero, medo, nostalgia, solidão e... saudades... muitas saudades... vontade de voltar para casa, para a fazenda para minha vidinha pacata sem ter que me defender para sobreviver ali naquele lugar horrível!Naquele momento precisava urgentemente de proteção, carinho... Em segundos percebi que eu tinha que crescer, resolver meus problemas imediatos, não havia ali ninguém por mim!
Extremamente sofrida e entregue aos meus sentimentos confusos, despertei para a realidade quando uma voz doce me chama pelo  nome. Neste momento parei de chorar, procurei me recompor, lavei o rosto. Quem me chamava era aquela irmã, a doce Irmã Maria do Sacrário,  a mesma que seria  minha professora! Pegou-me pela mão, assentou comigo em um banco do pátio e conversamos.
Mais calma, contei lhe o que havia acontecido  na sala ao lado quando fora enxotada porque não sabia fazer uma continha de dividir por três dígitos.
Percebi que ela ficou indignada com atitude antipedagógica da professora que incitou as alunas no que hoje chamamos bullying. Depois levou-me para a nova sala, apresentou-me para novas  colegas, levou-me até minha carteira onde iria assentar com outra aluna a Margarida. Grande Margarida!
Desta vez fui muito bem acolhida, minha coleguinha deu-me algumas instruções de como deveria me comportar no internato,  desenvolver o habito da autodefesa , para não ser passada “para traz.” Dividíamos a merenda, quando tínhamos, nos ajudávamos nos deveres de casa e nos defendíamos mutuamente das agressões de alunas maiores cheias de alto conceito de si mesmas.  
Nesses ambientes de reclusão a carência afetiva se confunde com o  instinto de sobrevivência gerando atitudes egoístas e violentas. Não raro se verem desentendimentos só para “marcar território” onde o mais fraco sempre cede para o mais forte, compreendendo humilhado, a sua real situação. No meu colégio não era diferente... Havia muita disputa!
Atrasei um ano no meu currículo escolar, em compensação ganhei  em conforto moral, ambiente, acolhimento e satisfação pessoal. Para mim era como se tivesse escapado do inferno e passado para o céu. Aos poucos fui aprendendo a viver, a me fazer respeitada sem apelar para violência, ou ignorância. Foram dez anos que apesar de tudo, valeram a pena!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O BULLYING




A lembrança da primeira professora para a maioria das pessoas é algo que enche o coração de ternura e saudade. Ela é aquela pessoa que preenche o vazio deixado pela ausência dos cuidados e carinho maternais, é quem assume com  muito amor a tarefa difícil de tornar agradável a adaptação da criança em seu novo espaço. A experiência de se ver só, fora do ambiente familiar, com estranhos, em nova realidade é para a criança uma mudança brusca que desestrutura seu íntimo, sentindo-se abandonada, perdida, desamparada. Essa criança precisa ter alguém maternal que a  acolha,  proteja e sobretudo que a faça sentir-se amada. 


Ao me encaminhar para a sala de aula, a primeira da minha vida, enchi-me de esperanças. Sonhava encontrar ali o suprimento de toda carinho e atenção que estava sentindo desde o dia em que chegara ao colégio no internato. Meu coração estava quase a explodir de alegria a me ver numa sala de aula de verdade com colegas, professora, os móveis adequados tudo aquilo que já fazia parte do meu imaginário mas que não conhecia de fato. Toda essa expectativa durou pouco. 

Uma imensa avalanche de decepção caiu sobre mim depois que me descobriram. Primeiro vieram as perguntas para sanar a curiosidade natural. Eu de pé na frente sob o olhar atento e crítico das colegas tinha que responder a muitas perguntas que eu nem sabia do que se tratava. Descobriram então que eu tinha vindo da roça e que era uma caipira! Tive que suportar os risinhos e cochichos maldosos... 

Com os nervos à flor da pele, maltratada intimamente, humilhada, fui submetida a um teste de avaliação, ali sem o menor preparo psicológico! Por sorte do azar, nada do que eu sabia foi arguido. Todo o conhecimento que eu tinha adquirido informalmente junto à minha mãe, era insuficiente para me qualificar.


Lembro-me que a professora tinha me dado um giz para que eu escrevesse no quadro negro uma frase para fazer a análise gramatical. Eu não conhecia giz não sabia como usa-lo naquele quadro enorme. Não tinha noção espacial porque só conhecia a louza, um quadro de uso individual onde  escrevíamos  com um  bastão da mesma pedra sobre o colo ou sobre a mesa. Essa  minha confusão gerou a pergunta: “você ao menos sabe escrever”? (ouvi risinhos abafados...) Com toda timidez balancei a cabeça em sinal positivo. “Então escreve!” Eu olhava para o giz, virava-o de um lado, do outro...nada. Eu não sabia como escrever com aquilo. Até que uma das colegas entrou para minha salvação: “professora, deixa eu escrever a frase para ela?”  


Nessa hora senti um tímido apoio, achei que aquela garota me inspirava confiança e cumplicidade. Entreguei-lhe o giz. Com desenvoltura ela escreveu no quadro a tal frase. Apesar do nervosismo, segui os seus movimentos, entendi que o quadro tinha aquelas dimensões  para que toda a sala pudesse ler e as letras deveriam ser proporcionais, pela mesma razão. Agora com o giz, a professora pediu-me que sublinhasse os verbos, passasse um círculo em volta dos substantivos um X nos pronomes... e assim por diante... Tudo feito achei que estava livre... Que nada! Agora veio o pior! 

Mandou que apagasse o quadro e ditou alguns números, dividido por... quando fiz um traço vertical de uns quarenta centímetros, as colegas começaram a rir. (A chave que eu sabia fazer era composta de um traço vertical e um horizontal partindo  dos primeiros 10 cm. ). Ditou: dois, sete, nove. Que maldade! Nunca havia feito uma divisão por três dígitos. Foi quando vi que a professora queria mesmo era me aniquilar! Vi  o seu sorriso de satisfação  e ouvi as gargalhadas  das colegas diante da minha  ignorância. 

Nessa hora ela mandou que eu pegasse minhas coisinhas e que saísse da sala dela, ela não tinha tempo para perder ensinando fazer continhas e que aquela sala não era para mim... Seu tom de voz estarrecedor  meteu-me medo! Constrangida, esmagada em meus profundos sentimentos,  sob o olhar crítico e debochado das colegas em gargalhadas, me encaminhei para a porta já aberta. Lá estava  ela com o braço direito e o indicador estirados mostrando-me a saída. A porta  ela gritou para a professora do segundo ano: “essa menina não está apta para o terceiro ano, vê se fica com ela, aqui ela não fica!”


Humilhada, com a autoestima lá em baixo, senti-me a última das criaturas, precisava que alguém que me  apoiasse, consolasse, mas de quem? Senti-me isolada, estava sozinha... Era motivo de chacota, de olhares debochados...

Experimentei todo o desprezo, humilhação e solidão que uma garotinha ingênua poderia sentir... Na verdade, só o fato de ser novata no colégio, não ter amigas e nem apoio, era para mim como se estivesse num isolamento total... foram os minutos mais longos da minha vida...eu queria sumir...voltar correndo para os braços de Mamãe...sentir o seu carinho, sua proteção!  
Não havia me preparado para uma situação como aquela! Foi constrangedor!

Hoje quando se falam em bullying, reporto a este dia fatídico em que fui agredida  moral e psicologicamente, motivando talvez a grande dificuldade que sempre carreguei com a matemática.




sexta-feira, 29 de junho de 2012

POBRE MENINA SONHADORA


Minha vida de estudante propriamente dita começou aos nove anos de idade, quando segundo a tradição familiar, e por força das circunstâncias, eu também deveria ir para o colégio dar inicio então à tão sonhada vida de internato.
Digo “tão sonhada” porque morria de inveja quando meus irmãos mais velhos  comentavam entre si as peripécias pelas quais passavam quando estavam no colégio. Minhas irmãs, Teca e Maria I.  referiam-se ao internato com tanta graça que eu  achava que deveria ser o paraíso. Aguardava com ansiedade o momento em que eu também iria  passar  pelas mesmas oportunidades, movimentar mais a minha vidinha que eu considerava pacata, na fazenda brincando sozinha, estudando ou fazendo algumas tarefinhas.
Pobre menina sonhadora! A realidade é bem diferente... claro, eu seria apenas mais uma entre uma centena de outras internas, e nem era a menor de todas! Não tinha porque ficar esperando que alguém fosse ter atenção especial comigo.
Entre as novatas como eu, duas irmãsinhas de sete e oito anos,  dividiam entre si o consolo e mitigavam as saudades. Eu, mais uma vez sozinha, agora chorando as saudades! Saudades da Mamãe, da família, do aconchego do lar, do sabor da  comida feita com capricho no fogão à lenha... o perfume da madeira queimando...Quando amanhecia no dormitório cheio de meninas, chegava ouvir o cantar dos pássaros nas árvores, o galo no galinheiro o mugir das vacas e seus bezerrinhos... era o barulho da natureza que eu nem dava conta de que me agradava tanto...
Os primeiros dias foram inesquecíveis! Tudo novo... nada era como na minha casa...tudo... tudo diferente! Aquele bando de meninas e mocinhas, ninguém familiar... olhares hostis, desconfiados. Lembro-me de procurar alguém com  quem dividir meus anseios e minhas indagações, mas parecia que todas estavam alegres e felizes, ninguém compartilhava da minha solidão. Muito acanhada, ficava sempre num cantinho com cara de poucos amigos, pensando como seria a minha vida ali naquele lugar estranho... de uma coisa eu tinha certeza: eu iria estudar de verdade, iria ocupar uma carteira, escrever no caderno, desenhar... isso me trazia ânimo e me enchia de esperança!
Chegou o primeiro dia de aula! A ansiedade tomava conta de mim... não sabia quem seria a professora, nem quem seriam minhas colegas. Nessa hora o número de alunas triplicou. No pátio, as alunas reunidas, internas e externas, todas mais ou menos da mesma idade formavam filas por série. Alguém chegou  e  me perguntou:
_ Qual é a sua fila?
Respondi:
_ Não sei...
_ Você se matriculou em qual série?
_ Não sei...
_ Que série você fez o ano passado?
_ Não sei... (A pessoa deve ter pensado que eu era mais uma doente mental que as irmãs por compaixão recebiam) Aí consegui formular uma frase mais consistente e disse: minha mãe disse que eu posso fazer o terceiro ano. Eu não sabia, mas essa  frase  provocou o meu primeiro vexame  de minha vida! Fui então conduzida para a fila do terceiro ano e junto com as outras alunas, para a sala de aula. Iniciadas as apresentações, a professora uma senhora corpulenta, vestida de amarelo, estranha, não tinha cara de professora, pelo menos não a cara que eu esperava que tivesse. Eu sonhava com uma professora linda, carinhosa e que me achasse  engraçadinha...
O seu visual não me agradou como também não a recepção “calorosa” que recebi.
Esse dia ficou assinalado na minha infância. Abalou as minhas expectativas como também a minha vida. Deixou lembranças cruéis que carrego até hoje   do meu primeiro dia de aula no internato.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

UMA NOVA VIDA


Aos nove anos comecei realmente a minha vida escolar em sala de aula comum. Como já disse antes, morávamos na fazenda, onde não havia escola. Minha mãe foi minha primeira professora. Ela me ensinou a ler, escrever e fazer algumas continhas, o básico, fez o que pode, como professora leiga, sem metodologia e recursos didáticos apropriados. Todos nós tivemos o mesmo início, até completarmos a idade de assumirmos sozinhos a vida em uma escola sob o regime de  internato. Adeus convivência familiar! Adeus liberdade... era o início de uma nova vida...

No ambiente escolar, como em todos em que se concentram pessoas e principalmente crianças e adolescentes, as normas são necessárias para que se estabeleçam ordem e  disciplina. Isto quando se tratam de estabelecimentos comuns  nos dias atuais. Em um regime de internato, essa exigência é triplicada. Toda rotina segue uma orientação rígida, metódica, militarista. Fila pra cá, fila pra lá, nada de conversa, obediência sempre! Até os passeios pela cidade aos domingos, eram feitos em fila...

Onde quer que  estivéssemos, no pátio em recreio, em sala de aula, ou em sala de estudo, três sinais de campainha nos alertavam que deveríamos fazer alguma coisa: ao primeiro, parar o que estivesse fazendo; ao segundo, formar a fila em silêncio absoluto; ao terceiro, seguir para a atividade própria  do horário, em fila...

A campainha era o sinal de alerta para alguma coisa conforme o horário: desde o despertar  até a última atividade  do dia, dormir. Uma rotina de deveres, obediência, submissão.   Os únicos momentos que podíamos conversar eram nos intervalos das aulas e no pátio, na hora do recreio.  No pátio, era proibido fazer rodinha, isto é, conversar em grupos. Tínhamos que brincar com bola, corda, bicicleta ou joguinhos de dama, xadrez, ludo, torre etc. sob a vigilância constante de uma ou duas irmãs (freiras). A necessidade de burlar a vigilância era imperiosa  dadas as inúmeras proibições.   Tínhamos sinais convencionados de alerta geral e outros criados pelas “panelinhas”  para quando fosse necessário a comunicação entre os seus membros.

O bom comportamento era o índice para a saída em visita à família no primeiro final de semana de cada mês.  Cada professor dentro da sala de aula ou irmã que vigiasse as internas em determinado período, recebia uma planilha com os nomes das internas onde seriam marcados sinais indicadores de bom ou mau comportamento.  Quem não obtivesse média suficiente não poderia sair. Permanecia  no colégio estudando ou ajudando na limpeza das salas e áreas comuns. As punições variavam entre a chamada de atenção (pito) da Madre Superiora, da diretora, da perda da saída no primeiro domingo, da suspensão do recreio e até expulsão para os casos gravíssimos.
Tínhamos quatro meses de férias: dezembro, janeiro, fevereiro e julho. Isto quer dizer que passávamos dois terços do ano no colégio. Que fazer para viver com disposição e alegria num ambiente intolerante e austero como o que nos era imposto? Como suportar a mesma rotina, dia após dia, com saudades de casa, da liberdade, do aconchego familiar, da fartura da fazenda, da comidinha da mamãe?!... Quanta saudade! Quantas lágrimas...

Para fugir da monotonia, a saída era criar situações divertidas cheias vivacidade em que, sem nos comprometer, aprontávamos  lances espirituosos sem jamais deixarmos pistas.

terça-feira, 26 de junho de 2012

FAZ DE CONTA QUE...


Faço parte de uma geração de transição. A geração da mudança que começou a perceber a necessidade de  transformação carregando os carismas positivos de uma educação tradicional mesclando-os com os imperativos da modernidade.
Quando me lembro da minha vida de criança, na fazenda onde o maior contato com o mundo exterior era um radio à pilha e os jornais, comparo-a com as das crianças atuais. A criançada moderna,  meninas de cinco a dez anos, não compreenderiam o quanto  agradável é brincar só, como eu brinquei. Não saberiam brincar de “faz de conta”,  usar a criatividade, a fantasia, não  se envolveriam em situações imaginárias a ponto de viver uma situação irreal.
Não tendo com quem dividir meus devaneios, tirava proveito do que tinha: das árvores, das bonecas, as bruxinhas de pano que eu mesma fazia. 
Subia nas árvores e passava a viver uma fantasia novelesca em que  algumas coleguinhas brincavam comigo. O cenário era sempre o mesmo, mas o enredo variava a cada dia. Amiguinhas imaginárias faziam parte desse mundo... Todas  eram “comadres” , tinham nome, casas, famílias, filhos pequenos.
Ali eu passava horas brincando de casinha visitando as “amigas” em suas casas, apenas passando de um galho para o outro.
Raramente eu tinha alguém de verdade brincando comigo. Isso só acontecia quando minha irmã casada Ester, ia passar uns dias conosco. Sua filha mais velha Milene, quase da minha idade, me trazia um novo estado de fantasia. Então eu aproveitava e deixava de lado o meu faz de conta solitário, para brincar também de faz de conta com crianças de verdade.
 As nossas casinhas  ora em cima, ora em baixo das árvores, tinham um “que” de um realismo. A mangueira  era a que melhor favorecia com sua sombra e galhos fortes.
Aí soltávamos a imaginação! Construíamos, mobiliávamos e  decorávamos com pecinhas encontradas no quintal ou na nossa imaginação. Fazíamos a divisão dos cômodos, a colocação dos móveis, tudo na mente, até as portas, as janelas tinham seu lugar exato. “Faz de conta que aqui é minha casa, aqui, o quarto... aqui a cozinha... ali a porta de entrada... minha porta tem campainha, não bater palma, por favor! A Milene era extremamente rigorosa nesse aspecto. Se eu fosse à casa dela, tinha que apertar a campainha no local demarcado para a porta: “dliiim-dlom”...
 A visita era recebida com requinte, conversávamos sobre problemas familiares, fazíamos fofoca, servíamos cafezinho, biscoitos, etc. Tínhamos criatividade para vivermos outros personagens também, artistas, cantoras... só que eu não conhecia bem essa gente, gostava mesmo era do papel de comadre. 
As crianças, uma mais sapeca  que a outra,tiravam nosso sossego... Passávamos o tempo corrigindo os pestinhas e  brigando com as empregadas.
Quando inventávamos de fazer cozinhadinha ou comidinha, tínhamos que buscar recursos na cozinha com minha irmã Teca que era mais “boazinha,” satisfazia sempre a nossa vontade sem reclamar.
Fazíamos fogão com pedras e tijolos espalhados pelo quintal. Recolhíamos  gravetos  e palha e sabugo de milho seco. Tudo  para acender o fogo! Essa era a pior hora! Não conhecíamos a técnica...
Risca fósforo, assopra, uma labaredazinha que não se sustenta, logo se apaga! A fumaça que entra nos olhos... Pára tudo para enxugar as lágrimas! Que peleja... Quando por fim conseguíamos acender o fogo já estávamos cansadas, e a fome gritando para pedirmos socorro na cozinha.
Quando  algum adulto acendia o fogo para nós, conseguíamos fazer a nossa comidinha. Que prazer! O arroz, ora papa, ora cru, mesmo assim era delicioso!

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O RATINHO EXPLORADOR


As nossas relações familiares eram pautadas no respeito.
O respeito é algo pessoal, nasce com a criatura como uma herança adquirida. Pode ser expresso por gestos, palavras e atitudes. Beijar as mãos dos pais, avós, tios, padrinhos até dos irmãos mais velhos enquanto se pedem a bênção, é sinal de respeito!
Uma tradição que ficou esquecida!
Outra expressão de respeito que ficou para trás é tirar o chapéu enquanto se cumprimenta alguém. Hoje nem se usam chapéus.
O respeito era de tal forma imposto, que não havia outro sentimento que o suplantasse. Era o termo que melhor descrevia as ligações interpessoais  entre cônjuges, pais e filhos, entre irmãos, tios, avós, superiores... Todos  deviam respeito, principalmente as mulheres e as crianças.
Imagine, para a mente de uma criança, que vê o mundo de baixo, na sua estatura. Ele (o respeito) tem a mesma proporção física do adulto. Ela  o olha (de baixo para cima) “vê” a dimensão do  respeito que o outro representa! A estatura desse esse sujeito representa o distanciamento entre ela e o outro, o tamanho do respeito...
Seria a situação da criança que só convivesse entre adultos ou que fosse a menor entre os familiares devendo consideração e respeito a todos.
Era o meu caso... Eu devia obediência até ao Quincas, dois anos mais velho. Obediência nesse caso equivale a respeito, palavra que abafa todos os outros sentimentos, isto é, se sobrepõe a outros mais doces, mais verdadeiros e universais como o amor!  
O amor, que é o sentimento maior que dá origem a tantas outras manifestações de empatia se perde sob o peso do respeito.   Assim sendo, todas as expressões que o revelam como o carinho, a ternura, o afago, o beijo são por demais “leves” para se valerem diante do respeito. São escondidas, inarticuladas, camufladas!
Amor? Só o próprio! O mesmo que leva ao orgulho e à vaidade!
Para uma família tradicionalmente machista, esta é a norma. Jamais se permitiram manifestações que ultrapassassem as barreiras do respeito. Um outro sentimento também era permitido, até aos homens, a devoção.
Toda essa introdução sobre sentimentos é uma justificativa para o episódio que vou contar.
Como já revelei em outros contos, sou a menor de uma irmandade de nove irmãos entre os vivos.
Morávamos na fazenda onde  nasci e vivi meus primeiros vinte anos. Enquanto criança  convivi com cinco irmãos, os outros três mais velhos já haviam saído de casa.
A família, tradicionalmente católica, implantou o culto diário no lar com a reza do terço todas as noites antes do último lanche.
Cada um escolhia seu lugar de preferência onde se ajoelhar sempre em volta da mesa na sala de jantar. Meus irmãos Rubens e Quincas tinham seus lugares bem na frente, do lado da cômoda sobre a qual ficava o oratório com as imagens.
Para toda criança, a contravenção é um prazer e não era diferente  para os filhos desse tradicional casal de mineiros. Como  papai era o único que permanecia de pé nessa hora, ficava fácil para ele manter o controle e garantir o respeito pelo momento sagrado. Os dois pestinhas ainda achavam jeito de ludibriar a vigilância e em vez de rezarem conversavam entre si usando a fresta entre a cômoda e a parede como canal de comunicação. Eles curtiam a conversinha até papai limpar a garganta a primeira vez, a segunda, na terceira, papai saia do seu lugar e com a mão fechada dava um cocorote em um e depois no outro. Ao terminar a reza os dois permaneciam ajoelhados rezando enquanto os outros iam tomar um lanche para ir dormir. 
Uma outra passagem engraçada ocorreu também enquanto rezávamos o terço. Estávamos todos contritos, cada qual com seu terço na mão, Ave Maria... Santa Maria...repetidas vezes, quando papai de pé encostado na mesa, começa a  movimentar a perna, estranhamente para alguém fleumático como ele. Com moderação nos movimentos para não perturbar o momento de devoção, foi com a mão até a curva da perna apertou algo que trouxe para cima até as nádegas e ficou ali segurando até o final da oração. Estávamos por entender aquela ação estranha do meu pai.
Quando a oração  terminou, estávamos todos curiosos para saber o que havia acontecido. Papai então,  chamou meu irmão para ajudá-lo  a desenvencilhar do problema disse:
 – Vem cá João, me ajuda aqui, com cuidado, se não ele escapa!
Todo mundo ficou intrigado com o que estava acontecendo... risinhos abafados!
O João então obedecendo, enfiou a mão sem saber do que se tratava... Nesse momento ouvimos um chiado e todos nós compreendemos o que se tratava! Era um ratinho perdido que teve a desgraça de achar que a perna do meu pai era caminho para suas investigações exploradoras.
Nem preciso dizer o quanto rimos, abafadamente e com respeito do acontecido!