sexta-feira, 29 de junho de 2012

POBRE MENINA SONHADORA


Minha vida de estudante propriamente dita começou aos nove anos de idade, quando segundo a tradição familiar, e por força das circunstâncias, eu também deveria ir para o colégio dar inicio então à tão sonhada vida de internato.
Digo “tão sonhada” porque morria de inveja quando meus irmãos mais velhos  comentavam entre si as peripécias pelas quais passavam quando estavam no colégio. Minhas irmãs, Teca e Maria I.  referiam-se ao internato com tanta graça que eu  achava que deveria ser o paraíso. Aguardava com ansiedade o momento em que eu também iria  passar  pelas mesmas oportunidades, movimentar mais a minha vidinha que eu considerava pacata, na fazenda brincando sozinha, estudando ou fazendo algumas tarefinhas.
Pobre menina sonhadora! A realidade é bem diferente... claro, eu seria apenas mais uma entre uma centena de outras internas, e nem era a menor de todas! Não tinha porque ficar esperando que alguém fosse ter atenção especial comigo.
Entre as novatas como eu, duas irmãsinhas de sete e oito anos,  dividiam entre si o consolo e mitigavam as saudades. Eu, mais uma vez sozinha, agora chorando as saudades! Saudades da Mamãe, da família, do aconchego do lar, do sabor da  comida feita com capricho no fogão à lenha... o perfume da madeira queimando...Quando amanhecia no dormitório cheio de meninas, chegava ouvir o cantar dos pássaros nas árvores, o galo no galinheiro o mugir das vacas e seus bezerrinhos... era o barulho da natureza que eu nem dava conta de que me agradava tanto...
Os primeiros dias foram inesquecíveis! Tudo novo... nada era como na minha casa...tudo... tudo diferente! Aquele bando de meninas e mocinhas, ninguém familiar... olhares hostis, desconfiados. Lembro-me de procurar alguém com  quem dividir meus anseios e minhas indagações, mas parecia que todas estavam alegres e felizes, ninguém compartilhava da minha solidão. Muito acanhada, ficava sempre num cantinho com cara de poucos amigos, pensando como seria a minha vida ali naquele lugar estranho... de uma coisa eu tinha certeza: eu iria estudar de verdade, iria ocupar uma carteira, escrever no caderno, desenhar... isso me trazia ânimo e me enchia de esperança!
Chegou o primeiro dia de aula! A ansiedade tomava conta de mim... não sabia quem seria a professora, nem quem seriam minhas colegas. Nessa hora o número de alunas triplicou. No pátio, as alunas reunidas, internas e externas, todas mais ou menos da mesma idade formavam filas por série. Alguém chegou  e  me perguntou:
_ Qual é a sua fila?
Respondi:
_ Não sei...
_ Você se matriculou em qual série?
_ Não sei...
_ Que série você fez o ano passado?
_ Não sei... (A pessoa deve ter pensado que eu era mais uma doente mental que as irmãs por compaixão recebiam) Aí consegui formular uma frase mais consistente e disse: minha mãe disse que eu posso fazer o terceiro ano. Eu não sabia, mas essa  frase  provocou o meu primeiro vexame  de minha vida! Fui então conduzida para a fila do terceiro ano e junto com as outras alunas, para a sala de aula. Iniciadas as apresentações, a professora uma senhora corpulenta, vestida de amarelo, estranha, não tinha cara de professora, pelo menos não a cara que eu esperava que tivesse. Eu sonhava com uma professora linda, carinhosa e que me achasse  engraçadinha...
O seu visual não me agradou como também não a recepção “calorosa” que recebi.
Esse dia ficou assinalado na minha infância. Abalou as minhas expectativas como também a minha vida. Deixou lembranças cruéis que carrego até hoje   do meu primeiro dia de aula no internato.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

UMA NOVA VIDA


Aos nove anos comecei realmente a minha vida escolar em sala de aula comum. Como já disse antes, morávamos na fazenda, onde não havia escola. Minha mãe foi minha primeira professora. Ela me ensinou a ler, escrever e fazer algumas continhas, o básico, fez o que pode, como professora leiga, sem metodologia e recursos didáticos apropriados. Todos nós tivemos o mesmo início, até completarmos a idade de assumirmos sozinhos a vida em uma escola sob o regime de  internato. Adeus convivência familiar! Adeus liberdade... era o início de uma nova vida...

No ambiente escolar, como em todos em que se concentram pessoas e principalmente crianças e adolescentes, as normas são necessárias para que se estabeleçam ordem e  disciplina. Isto quando se tratam de estabelecimentos comuns  nos dias atuais. Em um regime de internato, essa exigência é triplicada. Toda rotina segue uma orientação rígida, metódica, militarista. Fila pra cá, fila pra lá, nada de conversa, obediência sempre! Até os passeios pela cidade aos domingos, eram feitos em fila...

Onde quer que  estivéssemos, no pátio em recreio, em sala de aula, ou em sala de estudo, três sinais de campainha nos alertavam que deveríamos fazer alguma coisa: ao primeiro, parar o que estivesse fazendo; ao segundo, formar a fila em silêncio absoluto; ao terceiro, seguir para a atividade própria  do horário, em fila...

A campainha era o sinal de alerta para alguma coisa conforme o horário: desde o despertar  até a última atividade  do dia, dormir. Uma rotina de deveres, obediência, submissão.   Os únicos momentos que podíamos conversar eram nos intervalos das aulas e no pátio, na hora do recreio.  No pátio, era proibido fazer rodinha, isto é, conversar em grupos. Tínhamos que brincar com bola, corda, bicicleta ou joguinhos de dama, xadrez, ludo, torre etc. sob a vigilância constante de uma ou duas irmãs (freiras). A necessidade de burlar a vigilância era imperiosa  dadas as inúmeras proibições.   Tínhamos sinais convencionados de alerta geral e outros criados pelas “panelinhas”  para quando fosse necessário a comunicação entre os seus membros.

O bom comportamento era o índice para a saída em visita à família no primeiro final de semana de cada mês.  Cada professor dentro da sala de aula ou irmã que vigiasse as internas em determinado período, recebia uma planilha com os nomes das internas onde seriam marcados sinais indicadores de bom ou mau comportamento.  Quem não obtivesse média suficiente não poderia sair. Permanecia  no colégio estudando ou ajudando na limpeza das salas e áreas comuns. As punições variavam entre a chamada de atenção (pito) da Madre Superiora, da diretora, da perda da saída no primeiro domingo, da suspensão do recreio e até expulsão para os casos gravíssimos.
Tínhamos quatro meses de férias: dezembro, janeiro, fevereiro e julho. Isto quer dizer que passávamos dois terços do ano no colégio. Que fazer para viver com disposição e alegria num ambiente intolerante e austero como o que nos era imposto? Como suportar a mesma rotina, dia após dia, com saudades de casa, da liberdade, do aconchego familiar, da fartura da fazenda, da comidinha da mamãe?!... Quanta saudade! Quantas lágrimas...

Para fugir da monotonia, a saída era criar situações divertidas cheias vivacidade em que, sem nos comprometer, aprontávamos  lances espirituosos sem jamais deixarmos pistas.

terça-feira, 26 de junho de 2012

FAZ DE CONTA QUE...


Faço parte de uma geração de transição. A geração da mudança que começou a perceber a necessidade de  transformação carregando os carismas positivos de uma educação tradicional mesclando-os com os imperativos da modernidade.
Quando me lembro da minha vida de criança, na fazenda onde o maior contato com o mundo exterior era um radio à pilha e os jornais, comparo-a com as das crianças atuais. A criançada moderna,  meninas de cinco a dez anos, não compreenderiam o quanto  agradável é brincar só, como eu brinquei. Não saberiam brincar de “faz de conta”,  usar a criatividade, a fantasia, não  se envolveriam em situações imaginárias a ponto de viver uma situação irreal.
Não tendo com quem dividir meus devaneios, tirava proveito do que tinha: das árvores, das bonecas, as bruxinhas de pano que eu mesma fazia. 
Subia nas árvores e passava a viver uma fantasia novelesca em que  algumas coleguinhas brincavam comigo. O cenário era sempre o mesmo, mas o enredo variava a cada dia. Amiguinhas imaginárias faziam parte desse mundo... Todas  eram “comadres” , tinham nome, casas, famílias, filhos pequenos.
Ali eu passava horas brincando de casinha visitando as “amigas” em suas casas, apenas passando de um galho para o outro.
Raramente eu tinha alguém de verdade brincando comigo. Isso só acontecia quando minha irmã casada Ester, ia passar uns dias conosco. Sua filha mais velha Milene, quase da minha idade, me trazia um novo estado de fantasia. Então eu aproveitava e deixava de lado o meu faz de conta solitário, para brincar também de faz de conta com crianças de verdade.
 As nossas casinhas  ora em cima, ora em baixo das árvores, tinham um “que” de um realismo. A mangueira  era a que melhor favorecia com sua sombra e galhos fortes.
Aí soltávamos a imaginação! Construíamos, mobiliávamos e  decorávamos com pecinhas encontradas no quintal ou na nossa imaginação. Fazíamos a divisão dos cômodos, a colocação dos móveis, tudo na mente, até as portas, as janelas tinham seu lugar exato. “Faz de conta que aqui é minha casa, aqui, o quarto... aqui a cozinha... ali a porta de entrada... minha porta tem campainha, não bater palma, por favor! A Milene era extremamente rigorosa nesse aspecto. Se eu fosse à casa dela, tinha que apertar a campainha no local demarcado para a porta: “dliiim-dlom”...
 A visita era recebida com requinte, conversávamos sobre problemas familiares, fazíamos fofoca, servíamos cafezinho, biscoitos, etc. Tínhamos criatividade para vivermos outros personagens também, artistas, cantoras... só que eu não conhecia bem essa gente, gostava mesmo era do papel de comadre. 
As crianças, uma mais sapeca  que a outra,tiravam nosso sossego... Passávamos o tempo corrigindo os pestinhas e  brigando com as empregadas.
Quando inventávamos de fazer cozinhadinha ou comidinha, tínhamos que buscar recursos na cozinha com minha irmã Teca que era mais “boazinha,” satisfazia sempre a nossa vontade sem reclamar.
Fazíamos fogão com pedras e tijolos espalhados pelo quintal. Recolhíamos  gravetos  e palha e sabugo de milho seco. Tudo  para acender o fogo! Essa era a pior hora! Não conhecíamos a técnica...
Risca fósforo, assopra, uma labaredazinha que não se sustenta, logo se apaga! A fumaça que entra nos olhos... Pára tudo para enxugar as lágrimas! Que peleja... Quando por fim conseguíamos acender o fogo já estávamos cansadas, e a fome gritando para pedirmos socorro na cozinha.
Quando  algum adulto acendia o fogo para nós, conseguíamos fazer a nossa comidinha. Que prazer! O arroz, ora papa, ora cru, mesmo assim era delicioso!

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O RATINHO EXPLORADOR


As nossas relações familiares eram pautadas no respeito.
O respeito é algo pessoal, nasce com a criatura como uma herança adquirida. Pode ser expresso por gestos, palavras e atitudes. Beijar as mãos dos pais, avós, tios, padrinhos até dos irmãos mais velhos enquanto se pedem a bênção, é sinal de respeito!
Uma tradição que ficou esquecida!
Outra expressão de respeito que ficou para trás é tirar o chapéu enquanto se cumprimenta alguém. Hoje nem se usam chapéus.
O respeito era de tal forma imposto, que não havia outro sentimento que o suplantasse. Era o termo que melhor descrevia as ligações interpessoais  entre cônjuges, pais e filhos, entre irmãos, tios, avós, superiores... Todos  deviam respeito, principalmente as mulheres e as crianças.
Imagine, para a mente de uma criança, que vê o mundo de baixo, na sua estatura. Ele (o respeito) tem a mesma proporção física do adulto. Ela  o olha (de baixo para cima) “vê” a dimensão do  respeito que o outro representa! A estatura desse esse sujeito representa o distanciamento entre ela e o outro, o tamanho do respeito...
Seria a situação da criança que só convivesse entre adultos ou que fosse a menor entre os familiares devendo consideração e respeito a todos.
Era o meu caso... Eu devia obediência até ao Quincas, dois anos mais velho. Obediência nesse caso equivale a respeito, palavra que abafa todos os outros sentimentos, isto é, se sobrepõe a outros mais doces, mais verdadeiros e universais como o amor!  
O amor, que é o sentimento maior que dá origem a tantas outras manifestações de empatia se perde sob o peso do respeito.   Assim sendo, todas as expressões que o revelam como o carinho, a ternura, o afago, o beijo são por demais “leves” para se valerem diante do respeito. São escondidas, inarticuladas, camufladas!
Amor? Só o próprio! O mesmo que leva ao orgulho e à vaidade!
Para uma família tradicionalmente machista, esta é a norma. Jamais se permitiram manifestações que ultrapassassem as barreiras do respeito. Um outro sentimento também era permitido, até aos homens, a devoção.
Toda essa introdução sobre sentimentos é uma justificativa para o episódio que vou contar.
Como já revelei em outros contos, sou a menor de uma irmandade de nove irmãos entre os vivos.
Morávamos na fazenda onde  nasci e vivi meus primeiros vinte anos. Enquanto criança  convivi com cinco irmãos, os outros três mais velhos já haviam saído de casa.
A família, tradicionalmente católica, implantou o culto diário no lar com a reza do terço todas as noites antes do último lanche.
Cada um escolhia seu lugar de preferência onde se ajoelhar sempre em volta da mesa na sala de jantar. Meus irmãos Rubens e Quincas tinham seus lugares bem na frente, do lado da cômoda sobre a qual ficava o oratório com as imagens.
Para toda criança, a contravenção é um prazer e não era diferente  para os filhos desse tradicional casal de mineiros. Como  papai era o único que permanecia de pé nessa hora, ficava fácil para ele manter o controle e garantir o respeito pelo momento sagrado. Os dois pestinhas ainda achavam jeito de ludibriar a vigilância e em vez de rezarem conversavam entre si usando a fresta entre a cômoda e a parede como canal de comunicação. Eles curtiam a conversinha até papai limpar a garganta a primeira vez, a segunda, na terceira, papai saia do seu lugar e com a mão fechada dava um cocorote em um e depois no outro. Ao terminar a reza os dois permaneciam ajoelhados rezando enquanto os outros iam tomar um lanche para ir dormir. 
Uma outra passagem engraçada ocorreu também enquanto rezávamos o terço. Estávamos todos contritos, cada qual com seu terço na mão, Ave Maria... Santa Maria...repetidas vezes, quando papai de pé encostado na mesa, começa a  movimentar a perna, estranhamente para alguém fleumático como ele. Com moderação nos movimentos para não perturbar o momento de devoção, foi com a mão até a curva da perna apertou algo que trouxe para cima até as nádegas e ficou ali segurando até o final da oração. Estávamos por entender aquela ação estranha do meu pai.
Quando a oração  terminou, estávamos todos curiosos para saber o que havia acontecido. Papai então,  chamou meu irmão para ajudá-lo  a desenvencilhar do problema disse:
 – Vem cá João, me ajuda aqui, com cuidado, se não ele escapa!
Todo mundo ficou intrigado com o que estava acontecendo... risinhos abafados!
O João então obedecendo, enfiou a mão sem saber do que se tratava... Nesse momento ouvimos um chiado e todos nós compreendemos o que se tratava! Era um ratinho perdido que teve a desgraça de achar que a perna do meu pai era caminho para suas investigações exploradoras.
Nem preciso dizer o quanto rimos, abafadamente e com respeito do acontecido!  


terça-feira, 19 de junho de 2012

MINHA MÃE, MEU EXEMPLO


Quando nasci minha mãe já contava com 42 anos. Já era possuidora de uma vasta experiência de vida, de esposa e mãe, pois já colocara no mundo os meus onze irmãos. Casou-se aos 16 anos e começou a ter filhos. Saiu da casa dos pais onde tinha quem fizesse os trabalhos domésticos e era tratada com muito zelo pela ex-escrava Sá Cândia, para uma vida de responsabilidades e trabalho na fazenda.
Passou por experiências dolorosas com a doença de meu pai na época em que ele saiu de casa para se tratar, ficando sozinha com a administração da fazenda, da família ainda crianças e adolescentes.
O sofrimento torna as pessoas mais maduras, sensatas e decididas. 
Aprendeu muito com a vida, “na raça”, sem demonstrar fraqueza nem temor às adversidades que lhe estavam sendo impostas. Sua coragem e exemplo de fé é motivo de orgulho e motivação para todos nós seus filhos. As dificuldades pelas quais passou em sua vida fizeram-na uma mulher forte, corajosa, e determinada.
Mantinha atitude submissa como era próprio das esposas na primeira metade do século 20 e até bem pouco tempo. Havia, porém momentos em que exibia sua personalidade e  sua vontade prevalecia diante das imposições de meu pai. Muitas vezes era sua a última palavra. Conhecedora da personalidade do meu pai, sabia quando fazer a interferência, o momento certo de falar pra ser ouvida. Sofria com o jeito duro de ser do meu pai com a sua intransigência, porém nunca a vi chorar ou se lamentar, muito menos replicar.
Mamãe era a conciliadora em todos os momentos.
Com os filhos encontrava continuamente um pretexto para relevar as atitudes egocêntricas  e autoritárias do meu pai. Uma palavra apaziguadora era o bastante para justificar a conduta dele. Já com ele sua tática era outra em defesa dos filhos. Mesmo que estivessem errados, como para abrandar um pouco a situação, encontrava saída para amortizar a falta. Só que ela não deixava passar em branco, não alisava, com um jeito que só ela tinha de entender as pessoas, corrigia como verdadeiramente precisava. Repreensões e castigos... Nada de rebeldia porque não surtia efeito. O castigo durava até a hora determinada.  Eu imagino o quanto ela sofria quando tinha que impor um corretivo mais forte! Sua vontade talvez fosse agir com mais brandura, mas sabia por intuição talvez, das consequências para a educação daquele ser em formação. E não deu outra!Todos nós somos no mínimo pessoas honradas, descentes!
Não havia cursado nenhuma escola formal, mas entendia o ser humano como ninguém. Sabia agir no momento certo com o corretivo adequado. Mamãe era uma sábia!
Teve, como papai, o privilégio de “nascer bem” isto é, ter uma família de recursos que mantinha um professor para “educar” toda a prole em casa. Os colégios eram escassos, distante e difícil acesso. Mais pratico era conseguir alguém com bom conhecimento geral  que desse aulas para todos os filhos, morasse com a família e ainda tivesse um salário livre. Não era difícil encontrar uma pessoa com essa disponibilidade, porem dentro dos critérios estabelecidos pela tradição familiar. A pessoa tinha que ser católica praticante e seus princípios pautados nos ensinos e práticas religiosas.
Mamãe foi uma das pessoas que mais marcaram a minha personalidade. Não saberia falar de mim sem sentir os reflexos dos seus ensinamentos, do seu exemplo, da sua influência na minha maneira de ser. Às vezes me pego repetindo suas falas, seu modo de fazer as coisas, recordando: “como é mesmo que mamãe fazia isso?”


domingo, 17 de junho de 2012

MEU PAI, UMA PESSOA ADMIRÁVEL


A imagem que tenho, enquanto criança, de meu pai, era de uma pessoa de idade. O fato de eu ter sido a ultima de uma prole grande foi peremptório para que em minha mente ressaltasse o conceito de uma pessoa bem idosa, sempre tratada com muito respeito e cuidados para que não fosse contrariado de modo algum, até nos mínimos detalhes. O que eu não sabia ainda, era que ele se resguardava porque era doente, havia sofrido tuberculose. Isso deixava minha mãe e meus irmãos em pé de alerta a qualquer manifestação de gripe ou resfriado. O tratamento pra vida inteira, era seguido à risca. Mesmo assim teve várias recaídas. Por isso era tratado com tanta deferência. Era muito nervoso e autoritário, qualquer manifestação sua era uma ordem.
Ninguém se assentava à mesa ou se servia antes dele; os melhores pedaços eram separados para ele. Tomávamos as refeições em silêncio, porque se ele não comandasse a conversa, ninguém mais tinha o direito de se manifestar a não ser para responder às suas perguntas.   
Era obedecido, reverenciado, temido, mas...não conseguiu se fazer compreendido e  amado por mim enquanto  pequena. Não que fosse desprovido da capacidade de um sentimento maior. Ele amava sua família, adorava a mamãe, mas do seu jeito ranzinza e autoritário de ser, sem fazer demonstrações. Sim porque com esse temperamento irascível, somado a uma severa educação, só podia surgir um ser durão, travado na manifestação dos sentimentos...   Demonstrações de afeto, de carinho eram atitudes piegas. Raramente me lembro de assentar em seu colo, mas eu gostava que ele descascasse uma fruta para mim, era a maneira como eu encontrava para me aproximar dele. Era também o máximo que eu conseguia fazer. Precisava observar se o sinal estava verde para avançar. Nesse aspecto foi assim a vida toda.  Quando ele estava de bom humor, o máximo carinho que ele conseguia expressar era dizer: “minha filha que é bilha!” acho que a palavra “bilha” era usada só pra fazer rima, mas eu ficava feliz porque interpretava como carinho, ou bom humor.
Passava muito bem a imagem forte de quem protege, provê, administra, e comanda. Às vezes, enquanto calmo, usava a didática do convencimento, pedia opinião, mas só para ver o pensamento do outro. Já tinha a sua formada, e isto bastava. Não admitia réplica, a sua opinião era a que prevalecia. A única pessoa que raramente ouvia e acatava fora mamãe, era meu irmão João. Esse era diplomata! Sabia levar a “fera” com jeito. Conversa vai, conversa vem, quantas vezes vi papai ceder depois de muito rodeio, como se tivesse apurando o pensamento, numa discussão acadêmica. Meu cunhado Julhinho também tinha um relacionamento, digamos amigável com ele. Fora essas ocasiões, a imposição era o método empregado. Não admitia erros. Se não alcançasse êxito, a falha era sempre de  que executava a tarefa.
Havia um momento muito importante nas nossas vidas em que nas noites mais quentes nos reuníamos no alpendre. Papai não dizia, mas hoje eu reconheço o prazer que sentia e intimamente agradecia a companhia quando espontânea de qualquer um dos filhos que fosse ali bater um papinho com ele, principalmente os meninos. Ali era seu lugar preferido onde passava quase o dia todo lavrando pauzinhos ou lendo jornais.  Era quando passava com os meninos as tarefas do dia seguinte, relembrava casos da família, pessoas que eu não conhecia, mas pude guardar alguns nomes; às vezes fazia comentários das notícias dos jornais que assinava.
Meu pai era uma pessoa bem informada, politizada, estava sempre por dentro dos principais assuntos do momento. Nas noites mais frias essa reunião era feita na cozinha em volta de uma lata aberta como assadeira cheia de brasa. Assentávamos em volta para nos aquecer e ouvi-lo. Detestava conversas paralelas enquanto estivesse falando. Ambos, ele e mamãe faziam questão que estivéssemos todos juntos nessa hora.
Apesar dessa ranzinzisse, e de ser o responsável pelo meu caráter submisso, guardo com saudade a lembrança de meu pai; a  minha infância e tudo o que me relaciona com ela inclusive e principalmente a educação severa  que nos tornou a todos, seus filhos,pessoas de bem.  


quarta-feira, 13 de junho de 2012

A ROTINA NA FAZENDA


O dia pegava cedo na fazenda! Quando o sol despontava lá no horizonte a lida já andava alta. A vida ali começava a adquirir movimento com canto dos galos, da passarada, o mugido das vacas e bezerros! Quem tivesse que trabalhar não podia esperar o sol nascer.  Punha-se fora da cama ao primeiro chamado do papai. Primeiro ele raspava a garganta. Para um bom entendedor, meio rã-c-rãããã já basta. Quem primeiro ouvia o barulhinho característico, éramos nós as meninas (como meus pais nos chamavam) que dormíamos em quarto contíguo ao de meus pais cuja entrada se fazia pelo quarto deles. Uma das meninas se levantava rapidamente, passava pelo quarto dos meninos, os chamava, passava pelo banheiro e ia cuidar do café que seria servido para papai e mamãe na cama. Quando os outros se levantavam, a mesa estava posta com as quitandas feitas em casa e leite fresco recém saído do úbere da vaca.  


Cada um tinha sua tarefa especifica. Uma rotina diária de provocar tédio em qualquer cidadão urbanóide que se aventurasse passar ali uns tempos.  Enquanto um cuidava das vacas pra tirar o leite, o outro ia cuidar dos porcos. Vez por outra, tinha uma vaca recém parida que exigia maiores cuidados.
Se houvesse um trabalho extra pra fazer, geralmente era determinado na véspera pelo papai. Ora correr (visitar) os pastos, ora supervisionar o trabalho dos colonos nas lavouras e ainda concertar cercas, pontes, mata-burros e outros serviços considerados da ala masculina da família. Os meninos trabalhavam pesado... Começavam quando amanhecia e só paravam para as refeições e à tarde quando terminassem todo o serviço do dia.

 As tarefas eram bem definidas.

O serviço de casa cabia às meninas. Minhas irmãs Tereza e Maria Inez se incumbiam das refeições, da roupa, da arrumação da casa, dos doces e bolos. Elas trocavam as semanas. Uma cuidava da cozinha enquanto a outra se incumbia do restante do serviço feminino. Assim parecia justo. Cada semana era uma que tinha que pular da cama mais cedo para acender o fogo e passar aquele cafezinho cheiroso! Não era difícil acender o fogo no fogão a lenha, pois sempre tinha uma tora queimando à noite toda para cozinhar o feijão. 

Logo o cheirinho do café chegava até minhas narinas, então eu que não tinha que “pegar no batente,” virava pro canto e dormia até que me chamassem. Barulho algum me acordava... Que soninho bom! Nesse tempo eu ainda era ainda criança, não entrava nessa divisão de tarefas, mas era chamada toda hora para ajudar alguém, até lá fora nos afazeres masculinos.  Meus irmãos Rui e Quito um pouco mais velhos que eu faziam serviços mais leves enquanto Jonas que já beirava os 20 anos cuidava das obrigações de maior relevância.

Quando todas as tarefas estavam cumpridas, as meninas se reuniam com a mamãe no quarto de costura para fazer pequenos concertos, bordados ou passar roupa.

Mamãe tinha uma meta de fazer uma colcha de retalhos para cada um dos filhos. Era nesse espaço de tempo, entre as refeições, que acontecia um dos momentos de maior importância para nossa formação moral e religiosa. Mamãe contava histórias, falava dos livros que lia fazia comentários das notícias sempre com uma conotação moral.

Esse foi um tempo em que eu, caçula dessa família, convivi com meus queridos irmãos e irmãs. Como éramos nove filhos vivos, acima de Jonas, ainda tinha Esmeralda, José e Mário, casados, com os quais não tive convivência diária porque moravam fora da fazenda. 

domingo, 10 de junho de 2012

UM MÉTODO PECULIAR DE ENSINO


Ela era doce, meiga e carinhosa. Sempre paciente, mamãe foi a nossa alfabetizadora, nos preparando para alcançarmos classes mais altas quando chegasse o ponto de irmos para o colégio interno. Nossos pais faziam questão que todos tivessem uma boa educação. Como morávamos na fazenda, a saída seria pagar internato.
A época de assumirmos essa nova etapa da vida, era determinada pela saída dos mais velhos do colégio, ou o egresso dos mais velhos é que dependia da idade dos mais novos que fossem alcançando a época de irem para o internato.
Dos filhos mais velhos aos mais novos, a didática era a mesma.
As aulas eram ministradas em casa, sem muita rigidez de horário. Mamãe nos reunia ao redor de uma  mesa e ali ministrava as primeiros conhecimentos  -  alfabetização, a caligrafia, para ficar com a letra bonita (era prioridade para papai!), as quatro operações... A tabuada... Ah! Essa, papai fazia questão de “tomar”! Acho que é daí a origem do meu horror pela matemática. Morria de medo quando papai me chamava! Se errasse, levava um cocorote na cabeça! Isso pra mim era a morte! Os meus irmãos Rubens e Quincas, mais velhos que eu, já não se incomodavam tanto, mas às vezes a coisa ficava feia... o bicho pegava... Alem dos cocorotes, o castigo até aprender de cor a maldita tabuada! Para amenizar a tensão, mamãe dava um jeito e deixava-nos merendar e em seguida voltar aos estudos. Só podia sair se cumprisse o determinado.
Os exercícios, principalmente os de matemática (continhas) eram passados em uma pequena lousa verde retangular (30x20 cm), com uma  argolinha na lateral  onde se prendia uma tira de retalho que servia para limpar a pedra. Para que a lousa ficasse bem limpa, usávamos molha-la na língua. A ponta dessa tira era engomada de tanto cuspe acumulado...  Uma peça no formato de um palito de churrasquinho de uns oito centímetros de comprimento, do mesmo material da pedra, era o instrumento de escrita. Quando precisávamos apagar, era só passar o trapinho... molhado.
Ler mapas, decorar os nomes dos estados e suas respectivas  capitais,  conhecer os fatos mais relevantes da História do Brasil,  fazia parte do “currículo” doméstico. Disso eu gostava, tinha o maior prazer, decorava com facilidade e sabia a localização dos continentes, paises suas capitais e principais cidades.
Fazia verdadeiras viagens pelo mundo através dos mapas! Desembarcava em Portugal e dali partia para os países vizinhos! Visitava as cidades da Europa, a localização das capitais, o relevo, bacias hidrográficas! Tudo isso por meio de um Atlas, que nessa fase da minha vida proporcionou parte dos meus devaneios. Mamãe me ajudava bastante. Ela tinha um bom conhecimento geral, gostava de ler livros e  jornais que papai assinava. O jornal trazia a notícia e nós íamos localizar no mapa o local da ocorrência.
Após esse estudo, procurava gravar na memória, para mais tarde quando estivesse livre, viajar mentalmente, passando pelas situações, as quais haviam sido comentadas pela mamãe.
Um dos trechos mais visitados por mim era a palestina cujas histórias eram contadas em um livro intitulado História sagrada. Nele havia alguns mapas que eu queria identificar no Atlas, mas quase sempre sem resultado devido à diferença de escala.
Posso atribuir à mamãe o fato de toda a minha vida ter sido uma leitora contumaz, assim como o método de ensino da matemática aplicado pelo meu pai, em mim produziu efeitos que nunca mais consegui corrigir.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

UMA RUDE LEMBRANÇA


O cotidiano na fazenda no meu tempo de criança é a imagem que, com o passar do tempo, foi se sedimentando para se transformar numa lembrança pura, doce, embora um tanto quanto rude como possa ser a vida no campo.
Preciso que se diga que sou a última de doze irmãos, entre os quais, três já haviam falecido quando eu nasci. Éramos quatro mulheres e cinco homens.
 Aos homens cabiam as funções externas da casa, a lida com o gado, os porcos e a lavoura. Às filhas, os trabalhos domésticos. Os meninos aprendiam com o papai desde a administração dos negócios, os truques de como comprar e vender, às pequenas tarefas como castrar uma porca ou colocar um bezerrinho recém-nascido para mamar.
Às meninas os trabalhos domésticos, o ponto do doce, do requeijão, como bater o creme de leite para fazer manteiga... os bordados delicados, ou movimentar o pedal da máquina de costura. De ver a mamãe fazer, acumulávamos a aprendizagem. Era assim que as moças se preparavam para o casamento.
Cresci na zona rural onde papai possuía uma fazenda, cuja maior produção era o cultivo de lavouras de café. Os cafezais se estendiam pelas encostas dos morros formando um imenso lençol de um verde escuro quase negro. Era um próspero negócio.
A região era famosa por ser propícia à cultura cafeeira.
A cafeicultura na segunda metade do século passado, era cultivada de forma rudimentar utilizando de forças braçais de empregados remunerados que chamávamos colonos. Estes moravam com suas famílias na colônia: uma fileira de casas simples, com paredes rebocadas, cobertura com telhas de barro e o piso de terra batida. Cada casa tinha dois quartos, sala e cozinha, onde um fogão à lenha servia a qualquer família que ali morasse.
Os colonos eram contratados para o trabalho nas lavouras e quase sempre chegavam de carro de bois, que papai mandava buscar onde estivessem morando. O contrato de serviço era informal bastando a palavra e os “assentamentos” que papai fazia em um caderno de capa dura. Ali era registrado o acerto de cada colono, as retiradas semanais e o salário. Sábado era o dia em que eles vinham pegar o adiantamento para as compras. Era quando encostavam a enxada, trocavam de roupa e rumavam para a venda junto com outros companheiros para irem se alegrar um pouco. Não era raro aquele que consumia todo o dinheiro em bebida e farra. Voltava pra casa sem nenhuma compra e caindo de bêbado. A mulher que se virasse pedindo emprestado algo com o que cozinhar com vizinhos, ou na fazenda como eles chamavam a casa dos patrões. Eram homens sem o mínimo senso de economia, objetividade e amor à família. Por isso, viviam sempre na extrema pobreza, baixíssima higiene e nenhum conforto. A grande maioria era analfabeta, e muitos nem documentos possuíam. Eram quase nômades. Mudavam-se para uma outra fazenda, já comprometidos com uma nova dívida: o pagamento da anterior.
Como as leis trabalhistas ainda não haviam chegado ao meio rural, cada fazendeiro entendia de empregar os próprios meios para se relacionar com os empregados. Muitas vezes eram relações desumanas, prepotentes, sem a menor compaixão. O empregador não admitia o menor prejuízo.
O meu pai era justo, enérgico, rigoroso e, às vezes, ríspido. Todos o temiam. Quando contrariado... sai de baixo, porque o tempo  fecha...
Tudo tinha que correr como ele queria e determinava. Era frequente ouvir sua voz alterada com algum dos colonos que não cumpria suas ordens ou que não fazia do modo como ele havia determinado. Não havia quem o contestasse.
A irritação de meu pai quando chegava ao ponto de esbravejar, me causava pânico! Eu sempre procurava algo útil pra fazer com medo que pudesse sobrar pra mim...
Nesse exato momento em que evoco essa lembrança, ainda posso experimentar o estranho sentimento que então se apossava de mim... frio na barriga, tremor nas pernas e o pulsar acelerado do coração.
Nada melhor que o tempo para reconstituir as marcas da vida!

terça-feira, 5 de junho de 2012

OS ARREDORES DA CASA FAZENDA


Percorrendo as minhas lembranças na década de 1950 e alguns anos anteriores, vamos encontrar a motivação que me levou a escrever os retalhos de minhas memórias. Situações inusitadas para os mais jovens  urbanos e provavelmente motivo de saudade para os contemporâneos rurais.
Do alpendre da casa da fazenda podiam-se ver os currais, alguns pastos como o piquete, parte da invernada e uma pequena área cercada onde era plantado um mandiocal, aboboreiras, cana de açúcar e batata doce, e outros. Ah! Havia também nesse mesmo conjunto, um pé de eucalipto bem no canto da lavourinha, lindo, enorme, que balançava, balançava ao vento...   
Logo acima, uma pequena plantação  de café que se estendia até  o terreiro e a tulha. O terreiro era um espaço de terra batida,  onde o café era despejado  para começar o processo de secagem. A armazenagem do produto era feita na tulha, à granel. A produção só era ensacada, quando fosse comercializada. Eu adorava ver a movimentação. Ensacar, pesar, costurar a saca, empilhar... gostava também de subir nos volumes empilhados, quando papai não estava por perto, é claro!  
Nos fundos da casa, rodeando o quintal, havia outras divisões de pasto, todas com seus respectivos nomes, mangueiro  e pastinho, onde eram soltos os animais da lida diária, os cavalos e éguas de serviço.
Alguns degraus separavam a casa do curralzinho que ficava bem debaixo de algumas janelas inclusive uma do quarto dos meus pais, de onde se viam toda a movimentação da lida com o gado. Os currais em número de dois, eram cercados de tábuas interligados por porteiras. Adiante, após o primeiro curral ficava o barracão que o papai chamava de casa, onde os bezerros passavam a noite separados de suas mães. Ao lado do barracão, uma varanda onde se guardavam as tralhas mais pesadas da fazenda, inclusive o carro de bois.
Todas as tardes impreterivelmente, as vacas paridas, ou seja, as que ainda estavam amamentando, eram recolhidas junto com os bezerrinhos em um dos currais onde era feita a apartação, a separação das vacas de suas crias. Esse procedimento era para que a vaca pudesse reservar o leite produzido durante a noite, para que no dia seguinte, bem cedo, fosse ordenhada, ou seja, extraído o leite que por direito pertencia ao bezerrinho. Este, coitadinho, ficava preso no curral, berrando... berrando, sentindo falta da mãe ou com fome mesmo, quem sabe? A vaca, do lado de fora, em pleno exercício do instinto maternal, mugindo, como que externando indignada a ausência do filhote.
Bem, o leite usurpado da vaca virava queijo, manteiga, doce, requeijão da melhor qualidade, consumido pela família ou vendido na cidade. Essa era uma tarefa que mamãe sozinha exercia muito bem, não só porque a produção era pequena, mas principalmente porque era muito caprichosa, sempre com muito cuidado e higiene, dentro dos padrões da época. Nem por isso deixavam de ser deliciosos e muito procurados!
O queijo, trabalhado artesanalmente, o tipo meia cura, era amarelo e liso por fora, sem imperfeições, clarinho no interior, macio e delicioso! Ao corte, podia-se ver a manteiga escondida nas pequenas cavas.
Durante o processo de manufatura, havia um momento ímpar para as crianças, eu adorava! A massa, isto é, a qualhada era colocada nas fôrmas, espremida, “espinicada,” em seguida, mais massa e repete o processo de espremer para dar liga e o queijo ficar uniforme. No momento em que a qualhada era “espinicada” e espremida, o soro saia carregado de pequenas partículas de massa. Era um soro esbranquiçado e mais espesso que aparávamos em nossas canequinhas! Era um alimento rico e muito saboroso, um momento que esperávamos com ansiedade!
Em tempos de temperatura mais elevada, às vezes, o queijo fresco ainda na fôrma ou aquele de um dia, sofria alteração e aumentava de volume. Embora contrariada, mamãe tratava de consertar o dano.      
Este queijo inchado era transformado em queijo cozido tipo mussarela. O manuseio é simples: fatiar o queijo numa vasilha com água bem quente para cozinhar; quando a massa estiver no ponto de modelar, pega-se uma porção, trabalha-a bastante com as mãos para eliminar o excesso de água e começa a dar a forma desejada. Mamãe dava o formato de cabacinha. Quando os queijos inchavam... a saída pra aproveitar, era ter mais trabalho. Eu então adorava! Aquele queijinho de cabacinha era uma delicia!  Divertido era comê-lo desfolhado até o final!
Hoje aos 70 anos, enquanto exercito minha memória buscando os fatos vividos enquanto criança, recordo com saudade a vida saudável, despreocupada, tranqüila, tanto que chegava a ser monótona, porem feliz! 

DA JANELA DO MEU QUARTO...


Como era bom abrir a janela e sentir o cheiro das flores das laranjeiras e jabuticabeiras!
Da janela do meu quarto podiam-se ver frondosas fruteiras. Uma jabuticabeira e um pé de laranjas baianas eram as mais próximas.
O pomar se estendia do lado direito da casa com vários tipos de fruteiras e oferecia aos meus olhos uma visão panorâmica que só alcançava as copas das árvores.



A maior riqueza do pomar eram os pés de laranjas da Bahia ou baiana. As laranjeiras se adaptaram tão bem ao o clima e os bons tratos, que produziam frutos lindos, enormes, cada um com um filhotinho na ponta; eram tão grandes  e saborosas que uma pessoa mal dava conta de comer uma.
Nunca mais pude ver aquela qualidade de laranja, não com aquele sabor, sem ser doce e nem ácido, aquela textura, aquele volume de suco... Eram tão grandes que uma penca poderia quebrar o galho onde estivessem seguras.

E as jabuticabeiras! Meu Deus, que delícia poder chupar jabuticaba no pé! Escolher as maiores, as mais maduras e suculentas! Pena que a temporada era curta... mas eu ainda a alcançava nas férias. Era uma festa que eu celebrava sozinha porque quando eu chagava do internato, a temporada  da jabuticaba estava quase no final. Para que eu pudesse alcançar o final da produção, papai reservava, com alguns cuidados especiais, pelo menos um dos pés só para  os que estavam fora.  
A mangueira era uma frondosa árvore, tronco e galhos grossos que  proporcionam  toda fantasia e diversão peculiar a uma garota que vive só. Conforto, bem estar e posso dizer... cumplicidade! Era ali que eu passava grande parte da minha infância com minhas “comadres” imaginárias brincando de casinha. Muito raramente tinha alguém de verdade brincando comigo.
O abacateiro, coitado, todo ano na época de São João levava uma surra de vara de marmelo tostada na fogueira. Era para “aprender” a dar fruto. Era uma arvore alta, linda, mas não produzia. Havia outras fruteiras que também “apanhavam” – uma macieira e uma mexeriqueira. Recordo que tanto o abacateiro como o pé de mexericas poncãs, agradeceram ao “tratamento”, mas a macieira... por certo não bastava a surra! Não posso dizer se a qualidade das frutas foi também influenciada pelo dito “corretivo,” provavelmente os bons cuidados e a terra, contribuíram. O que sei é que eram frutos maravilhosos, tanto as poncãs quanto os abacates!
Outras qualidades de laranjeiras também faziam parte desse pomar, como a da ilha e outras comuns, que se não perdiam, era porque mamãe procurava  jeito de aproveitar um pouco da produção, no caso das laranjas, fazendo vinho artesanal.
Bem próximo da casa, mas distante da minha visão da janela, estava uma das moitas de bananeira a mais antiga. A banana maçã colhida ali naquela touceira, era doce como mel. Mais para o fundo do quintal outras moitas de outras qualidades como a marmelo e a nanica que eram usadas para fazer doce.

O rego d’água corria cortando o pomar quase na diagonal. Sua nascente era bem acima. Um braço artificial de um córrego que na seca quase parava de correr, foi o recurso de que papai usou para abastecer  o bebedouro do gado, o monjolo, o pomar e o chiqueiro. Papai usava o sistema de irrigação convencional. Abria desvios no rego para que a água pudesse correr pelo quintal e molhar as fruteiras. Esse por certo era um dos itens de preservação e cuidado que faziam toda a diferença na qualidade da produção frutífera daquele pomar.
A fazenda “acordava” ainda com o escuro. O sol  mal se mostrava   por uma barra levemente amarelada no horizonte, já os galos, os bezerros e as vacas  iniciavam a algazarra salutar e alegre  da saudação ao novo  dia! Mas eu continuava dormindo...

sábado, 2 de junho de 2012

A CASA DA FAZENDA





É com imensa saudade que busco na lembrança, o lugar onde nasci e vivi até meus vinte anos!
Era uma gleba de terras situada na encosta de um morro de onde se tinha uma vista privilegiada daí o seu nome – Boa Vista, isto é, São José da Boa Vista. Por devoção ao santo, meu pai até construiu uma capelinha um pouco mais acima da casa, em cujo altar uma imagem do santo exibia o Menino Jesus em um dos braços e ramo de lírios no outro.


Nessa capela, uma vez por ano, no dia 19 de março, vinha um padre celebrar  missa. Ali se reuniam vizinhos, parentes e os colonos que trabalhavam nos cafezais. Após a Missa, que geralmente era pela manhã  um café era servido com bolo, biscoitos, broas de fubá, pão de queijo etc. Era uma movimentação diferente e singular!
Minhas lembranças desse evento vão até os meus nove anos, fato que não teve seguimento para mim. Com essa idade fui mandada para o internato em colégio de freiras (essa passagem vai gerar novos episódios). Como o início das aulas era em março, eu já estava no internato, perdia então o único acontecimento festivo realizado na fazenda.
A casa, construída em terreno inclinado, tinha no lado direito sob quase todo piso, um porão onde se guardavam entulhos; era também o abrigo dos cães que serviam de guardas da fazenda, o que muito me aborrecia porque eu queria fazer daquele lugar o meu refúgio, o lugar onde poderia viver minhas fantasiais de menina.
O piso da casa era de tábua corrida que rangia sob as passadas das pessoas mais pesadas; as janelas muito altas todas com vidraças de onde se viam pela frente os currais e do lado direito o pomar.
 As janelas eram um conjunto formado por vidraças em duas partes, que se moviam verticalmente para que pudesse entrar o ar e a claridade ao mesmo tempo e a parte de madeira, tábuas serradas toscamente, para vedar a luz e permitir uma maior proteção. As paredes que subiam até o teto, eram de tijolos; as portas largas se fechavam em duas partes ou folhas.
Na sala de jantar, uma mesa com oito lugares onde fazíamos as refeições todos juntos. Havia um móvel, sobre o qual um oratório. Dentro dele imagens de Nossa Senhora Aparecida, Nossa S. das Graças e um crucifixo.
A sala de visitas era um dos cômodos da casa que não me provocava atrativos, muito pelo contrário, me causava asco ou medo... talvez por ter um aspecto sóbrio, era um ambiente masculino com seus móveis austeros, rústicos, peculiares...
O quarto de hóspedes dava entrada pela sala de visitas. Era um cômodo que raramente era ocupado. Estava sempre fechado, empoeirado.
Os móveis de toda casa eram adequados para a época: de madeira maciça traduzindo a simplicidade e falta de senso estético, natural para as exigências dos proprietários.
Na falta de energia elétrica, usávamos lamparinas e lampiões à querosene, mas papai que gostava de conforto, procurava buscar alternativas para obter maior comodidade.
Tudo na minha visão de criança curiosa era muito grande e pitoresco. Havia um ar de mistério e magia representando qualquer coisa de proibitivo que eu fazia questão de desvendar, descobrir ou revelar a mim mesma.
Como toda criança solitária, a busca pelo novo, a descoberta, o fascínio pelo insondável movia todas as cordas da minha curiosidade e solidão na busca de novidades naquele ambiente severo, intransigente e imponente que constituía o lugar onde nasci e vivi com minha família.
Assim construí o meu mundo particular de divagações e explorações minuciosas em que tudo até os movimentos de um inseto me faziam entreter por horas a fio.  

sexta-feira, 1 de junho de 2012

MINHA PRIMEIRA LEMBRANÇA



Eu era muito pequena, não sei exatamente quantos anos eu tinha: três, quatro... Só sei que são as primeiras lembranças  gravadas na minha memória.
 As pessoas, ou melhor, os adultos da minha casa falavam em vovó, Passos (cidade), viagem, aprontar. Alguém desamassava roupa com ferro à brasa, meu pai gritava para que tivéssemos pressa... Corre pra cá, corre pra lá,  todos se arrumando com muita afobação.Tomar banho, trocar de roupa, preparar uma bagagem com poucas coisas; a viagem seria curta.
Sempre tinha uma matula; papai e mamãe eram prevenidos, caso o carro encravasse e tivéssemos que passar a noite no Ford 29, ou ao relento.
Por que será que todo mundo corria tanto? Por que tanta seriedade? Ninguém parecia feliz por estar se preparando para uma viagem... Ninguém me falava nada... Talvez porque eu fosse a menor da casa, achavam que não me deviam explicações.
Chegamos ao destino sem atropelos.
A casa era enorme, portas de madeira, muitas portas, todas fechadas em duas folhas, muito altas, sala ampla, muitas pessoas...
Fechaduras e chaves impressionantemente grandes. O piso de madeira (tábua corrida), peças irregulares no comprimento e largura, mal colocadas umas ao lado das outras, deixava visualizar que havia algo embaixo daquele assoalho.
Muitas pessoas sisudas... Umas choravam baixinho, eu agarrada na mão da mamãe queria mais era fugir daquela gente que ao me ver,  beliscavam minhas bochechas exclamando: que gracinha, como ela cresceu! É horrível ser criança, as pessoas batendo na  cabeça e fazendo os comentários tolos de sempre.
Até então eu estava boiando... não entendia o que se passava... não conhecia ninguém, mas, todos me conheciam, sabiam meu nome... já estava começando a me encher daquela situação quando olhei para o assoalho e vi algo se mover em baixo. A curiosidade tomou conta de mim, me abaixei tentando ver... Aquilo que se agitava lá embaixo era algo estranho, mas não me metia medo. Comecei então a sondar o ambiente procurando como poderia chegar àquele lugar.
Por entre as pernas daquela aglomeração de pessoas, consegui visualizar um vai-vem de mulheres carregando bandejas copos e jarras.
Desvencilhei-me daquele aglomerado de pessoas e esgueirando-me pela parede para que ninguém me atropelasse, consegui alcançar uma movimentada porta que dava para um corredor ladeado de portas fechadas. Sorrateiramente fui andando  sempre encostada à parede para não ser atropelada. Sabia que ia  encontrar aquele lugar!  Ao me afastar, apesar da pouca idade, sabia que mamãe iria se preocupar. Mas, a curiosidade era maior! Consegui chegar à cozinha e ali vi outra porta. Esta sim estava aberta por onde se passava para a área de serviços.Em frente, uma enorme escadaria que dava para o quintal. Desci os degraus um a um, com muito medo de ser pega por alguém que já tivesse dado por minha falta.
Quando cheguei em baixo, olhei para cima e me deu medo, pensar que teria que subir aqueles degraus todos  sozinha...
Comecei a chorar e nisso apareceu uma menina bem maior que eu, me acalmou e me levou... para onde??? Para aquele lugar, aquele que tanto me atraia.
A mocinha me inspirou confiança, pegou na minha mão e me levou para o porão; tratava-me com intimidade porque ela me conhecia.
O porão era um daqueles lugares fascinantes cheios de velharias, poeira e teias de aranha, uma grande novidade para mim. A garota andava por ali com desenvoltura mostrando que conhecia bem todas as passagens. Mostrava–me aqui e ali os objetos e móveis, o “lugar ideal para se brincar de casinha.” Ora, eu nem sabia o que era “brincar de casinha.”
Chegamos então na “cozinha”. Ali havia uma mesa, sobre a qual uma rosca que ela acabara de amassar.
Nesse momento veio até as minhas narinas o cheiro característico de excremento de porco. Na minha mente infantil  fiz a ligação olfativa com a visual. Tudo cresceu na minha cabecinha... Via tal rosca assada, servida a mim, foi quando tomei a decisão desesperada de fugir dali procurando a mamãe.
Nessas alturas da história, já tinha muita gente à minha  procura. O sepultamento da vovó seria logo em seguida... E eu continuava sem entender o que estava acontecendo... O meu mundo  girava à parte!