quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O INCIDENTE DO NECROTÉRIO


Aos poucos minha vida voltou ao normal. Tive que me esforçar bastante para alcançar a classe. A minha recuperação se deu por completo e minha vida passou ao normal, sempre buscando novas atividades que pudessem minimizar aquela monotonia sufocante.
Certo dia, um alvoroço envolvia as meninas externas provocando nas internas, curiosidade e expectativa.  Soubemos então que havia um corpo  no necrotério. Falando assim, parece normal, porque é o local apropriado onde se colocam as vítimas fatais de acidentes até que sejam  liberados e resgatados pelas famílias.
O tal necrotério não era o IML de hoje com salas equipadas, refrigeradas, apropriadas; era uma salinha na entrada do cemitério. Na verdade, esse cemitério já se situava dentro da cidade bem próximo ao colégio. De algumas janelas do dormitório viam-se os túmulos, o que para a maioria das colegas era motivo de  apreensão e medo e... muita fantasia. Era frequente acordarmos com os gritos de alguma menina que fantasiava a aproximação de espíritos confundidos com a sombras em movimento  dos eucaliptos projetadas nas paredes. O cenário era ideal para a “imaginação solta” das internas. A proximidade do cemitério, a luminosidade dos postes da rua e a respectiva sombra das arvores, o vento sibilando e provocando batidas de janelas e vidraças... Bastava uma menina gritar para provocar pânico na meninada estendendo-se por todos os dormitórios. Umas gritavam por medo, outras entravam na onda por pura farra! A barulheira naturalmente acordava o colégio colocando as freiras em polvorosa!
Bem, no dia do incidente do necrotério, a curiosidade fez com que criássemos uma estratégia para burlar a vigilância e sairmos do colégio sem sermos notadas. Eram dois os portões que davam acesso ao colégio. Um servia de entrada e saída para as externas, o outro servia aos trabalhadores da obra de ampliação do colégio.
O plano era colocar uma colega bem grandalhona para conversar com a irmã que vigiava a saída das externas e passarmos despercebidamente como se fôssemos uma delas. Até aí tudo bem.
As complicações começaram com a exposição do cadáver naquele lugar. Grande número de curiosos se acotovelava para ver por segundos o objeto raro ali exposto. Entre a sala onde estava o defunto e o hall do cemitério havia uma escadinha  e uma porta de metal com a parte superior em grade possibilitando a quem tivesse altura bastante, visualizar o seu interior. Quando enfim consegui chegar à porta, vi que não tinha altura suficiente. Foi dando alguns saltos que consegui ver. E o pouco que vi me provocou desarranjo estomacal e uma imagem que se alojou em minha mente por muitos anos.
Contaram que era de um suicida aquele corpo  que ali estava exposto. Havia deitado sobre os trilhos da linha da Mogiana. O trem o degolou e partiu suas pernas. O que jazia sobre uma mesa era algo estarrecedor! O tronco nu, mutilado, branco como macarrão cozido, apenas cobertas as partes íntimas, a cabeça do lado direito e as pernas colocadas no sentido transversal...
Voltamos para o colégio sem maiores dificuldades, aproveitando a entrada de um carregamento de material que camuflou a nossa  passagem.  Era hora do almoço, a vigilância estava menos atenta.
Entramos no refeitório. Nesse momento, elaborei a maior associação de ideias, com consequências duradoras, para a vida toda. Sobre as mesas estava  uma travessa de macarrão branco. A associação foi perfeita e imediata. Saí correndo do refeitório em busca da “casinha” para desembaraçar-me do que estava revoltado no meu estômago.
Essa transgressão trouxe consequências desagradáveis para todas as que participaram. Impressionadas, o incidente por muito tempo foi motivo de pesadelos e muita gritaria no meio da noite...





 

 

Um comentário:

Kátia Kappel disse...

Sua linguagem solta é deliciosa!!!!!!
Viajei...rs