sábado, 4 de agosto de 2012

O pão nosso com sardinha de todos os dias


A vida no internato era cheia de altos e baixos no que se refere ao estado de espírito das internas. Nem sempre era diversão...  Tínhamos  momentos alegres e até felizes! Mas, havia também  ocasiões de  melancolia,  em que o sofrimento  tinha como causa essencial, a carência afetiva, a falta da família, as lembranças, quadros da fartura, da comida gostosa, da liberdade... Não era raro depararmos com coleguinhas amuadas pelos cantos chorando de saudades de casa. Acontecia que ao consola-la, caíamos no choro também. Era contagiante...
 Isso sempre se dava em momentos de recolhimento, na capela ou no dormitório quando o silêncio era absoluto. Eram as ocasiões em que se evocava a imagem  da família reunida, o aconchego do lar, as carícias dos entes queridos principalmente a mãe... Ah! Como tudo isso era doído! A saudade tinha um gosto amargo, era como um punhal penetrando no peito! Uma dor que fecha a garganta...  o choro pungente que dilacera a alma! Dor semelhante, imagino eu, à  das crianças  amontoadas nos orfanatos que só é maior porque a única coisa que sabem é que não têm um lar e ninguém que as esperem ou que preencham suas esperanças ou ainda, não têm de quem sentir saudade...
À medida que avançávamos em idade progredíamos em solidariedade, tornando-nos mais amorosas;  revezávamos no papel de mãe, de irmã mais velha, e bancávamos as protetoras umas das outras.
O meu grupo era formado por quatro meninas. Uma mais velha que eu, a Margarida, garota inteligente, pouca conversa, astuta, sabia tudo, com um lance de olhar interpretava o que se passava ao seu redor, por isso era a líder. As duas outras eram gêmeas, Lívia e Olivia. A Margarida era amada por todas, mas, tinha  ligação mais forte comigo e eu com ela.  Olívia gostava de todas por igual tinha boa índole era companheira para todas as horas. Já a Lívia tinha o gênio forte, era ciumenta e egoísta. Brigava por qualquer coisa, muitas vezes foi ameaçada de ser expulsa do grupo, por causar intrigas, sempre comigo. Não perdia a oportunidade de me alfinetar. Mas todas estavam prontas a agasalhar umas às outras em qualquer situação.
Valores como tolerância, repeito, amizade, sinceridade, companheirismo e desapego eram desenvolvidos em nós, porque tínhamos que impor um ambiente que amenizasse as condições de amargura impostas pelo regime. Tínhamos que suprir as carências uma das outras.
Nosso grupinho de quatro acabou se desfazendo quando no semestre seguinte as gêmeas não voltaram. O colégio perdeu muitas alunas e o internato entrou numa situação de recessão que foi difícil aguentar.  Para economizar água, o tempo do banho era cronometrado. Tempo para se molhar, ensaboar e enxaguar. A irmã dava o sinal para começar e finalizar cada movimento.
 A alimentação estava intragável, mal feita, fria, sem tempero. O café da manhã era servido às 7hs.  e o almoço ao meio dia. No intervalo quem tivesse grana podia comprar lanche na cantina, quem não tivesse, ficava com fome.  
Fazíamos fila para tudo. Tínhamos que esperar todas as alunas chegarem para entrarmos para o refeitório. Essa espera era a desculpa para que comida posta na mesa esfriasse. A torcida era para que a gororoba estivesse com melhor aspecto e variada, já que todos os dias eram os mesmos pratos: arroz, feijão, bife de fígado e salada de alface com tomate. Tudo bem se o arroz não fosse “unidos venceremos”  o feijão mais quentinho e o bife não apresentasse uma natinha esverdeada denunciando as horas que estava servido.  
Eu olhava para aquilo e nem me assentava à mesa. Não podia compreender como as colegas conseguiam comer aquilo... passei então a pedir pão à copeira. Comer pão puro? Aventurei pedir café ou açúcar. Quando não tinha café, o açúcar era bem-vindo. Abria um buraco no pão, colocava o açúcar e molhava com água para ficar mais fácil de engolir.  
Tudo ia muito bem até que trocaram a copeira e não pude mais comer um pão inteiro no almoço. Passei então a dividir o pãozinho do café da manhã; deixava a outra metade para comer no almoço com açúcar molhado.
Para fazer economia, as irmãs começaram a fabricar o pão nas dependências do colégio. E o pão foi encolhendo...
Um dia, nos reunimos e fomos reclamar com a Madre Superiora. Ela faltou chorar, reclamou das inadimplências e que ela não poderia dispensar as alunas que estivessem em falta com as prestações. O motivo real não era bem esse... Era o desvio para  outro projeto da direção.
A  providência tomada foi aumentar um lanche entre o café e o almoço. Então começaram a servir pão com sardinha... todos os dias! Eu queria morrer!
Escrever aos meus pais, reclamar, botar a boca no trombone... Nem pensar... as cartas eram censuradas,  lidas pelas irmãs. Se elas encontrassem algo que denegrisse a imagem do colégio, mandavam corrigir.
A situação estava insustentável quando a Margarida bolou uma forma de nos alimentarmos com algo mais substancioso. Guardávamos a  banana da sobremesa, amassávamos com leite condensado e leite em pó. Era uma delícia!Ela tinha conta  em uma farmácia onde comprava por telefone. Por muito tempo, essa foi a minha refeição do dia. Minha amiga Margarida, Deus lhe pague pela sua afeição e solidariedade.
Minhas  reservas nutritivas conseguidas  enquanto em casa, na fazenda com a fartura com que fui criada, estavam no limite... Logo meu organismo denunciaria a desnutrição... mas isso será assunto para  a próxima postagem!

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