sábado, 28 de julho de 2012

A superação


A busca por um melhor lugar ao sol é próprio do ser vivo. A planta na ausência de  luz se estira  entorta e contorce à procura da claridade. Os animais se aconchegam uns aos outros à procura de calor. O ser humano não é diferente, está sempre à procura do que lhe falta. Amor, carinho, compreensão para uns,  para outros o status, a posição de comando... Ainda a outros só o dinheiro e tudo aquilo que ele proporciona e representa, basta!
Naquele momento, na fase de adaptação na outra sala de aula, eu fazia parte dos seres humanos desprovidos de afeto! Na minha carência sentia-me  sozinha, confusa, cheia de medo! Tudo me era estranho, nada se parecia com aquilo que sonhara noites a fio na fazenda...  via-me no colégio cercada de coleguinhas, brincando, fazendo traquinagens...
A realidade era bem outra...
Fui acolhida na outra sala com atenção, mesmo porque todas as alunas e a professora presenciaram a minha desventura e ficaram angustiadas. A  irmã que agora seria minha professora e as novas coleguinhas, acolheram-me tão bem que aos poucos fui esquecendo os maus tratos sofridos e passei a me interessar pela sobrevivência naquele lugar inóspito. Minha coleguinha Margarida foi a grande responsável pela minha adaptação. Foi ela quem me orientou quanto aos cuidados pessoais, como manter meus pertences guardados em ordem, a fazer silêncio sempre que não estivéssemos em recreio...etc.
Com o tempo passei a receber elogios nas aulas porque tinha desenvoltura para ler e escrever. Entretanto, quase tudo o que “dominava” estava fora do currículo. Matérias como geografia e história que eu havia estudado em casa estavam completamente fora do currículo.Conhecia  o Mundo mas não sabia nada sobre São Paulo. Tive que estudar bastante! A Irmã Sacrário, aquela adorável criatura, compreendeu que eu só precisava de um empurrãozinho para conseguir  me igualar à turma. Empenhou-se em me auxiliar nos seus momentos de folga. Margarida ajudava-me nos deveres de casa, e nos apegamos muito.
Aquele ano letivo transcorreu sem maiores incidentes. Rapidamente alcancei a turma, adaptei-me ao currículo, transpondo os obstáculos sem maiores incidentes.
 Durante todo o semestre, recebi apenas três visitas dos meus pais. Apesar das saudades, eu compreendia que era difícil a visita constante da minha família. Morávamos não tão longe, mas o acesso era difícil. Estrada acidentada de terra batida, uma dificuldade! No período da chuva era a lama, na seca, a poeira...  
No final de cada mês as internas que tinham bom comportamento podiam  passar o final de semana em casa. Eu só saía nos feriados maiores tipo Semana Santa. Em compensação nós que ficávamos íamos brincar na chácara das Irmãs em frente ao colégio.  Essa chácara era o lugar de recreio das freiras onde elas jogavam vôlei ou  outro tipo de competição com bola. Da janela do dormitório podíamos vê-las na maior “farra” gritando e correndo na maior alegria. Eu gostava de ver... Desfiz o mito da esposa de Cristo recatada que vivia em oração fazendo tudo muito certinho! Sentia que elas eram pessoas normais que viviam em reclusão por vontade própria para servir a Cristo através da doação de si mesmas! Eram pessoas comuns com  algumas virtudes e  muitos defeitos, entre os quais o preconceito.
O tratamento dado às alunas mais abastadas era diferenciado das  pobres; nem mesmo entre as  ricas se viam negras. Uma única exceção, a Negô, uma das primeiras alunas, quando o colégio estava iniciando  como internato. Não raro acontecia de convivermos com meninas com problemas mentais graves ou com outras doenças nervosas como a epilepsia, que exigia de nós muita compreensão e desenvolvimento do senso de tolerância. Era fácil perceber que as famílias contribuíam para que essas alunas fossem aceitas e  que tivessem um tratamento diferenciado. Eram todas brancas e abastadas.
Apesar da rotina, a  cada dia vivíamos a expectativa de um incidente para movimentar os ânimos, ora uma briga, ora um ataque nervoso e ainda uma repreensão pública ou castigo. Sempre algo que dava motivo bastante para comentários e fofocas! Uma experiência de vida que fortalece e estimula a convivência com as diferenças!

segunda-feira, 23 de julho de 2012

DEPOIS DA TEMPESTADE, A BONANÇA


Aquele longínquo e fatídico dia da minha infância jamais foi esquecido.
O bullying moral  sofrido no primeiro dia de aula na minha recém-chegada ao internato, a humilhação por descer tão baixo no conceito daquelas pessoas, baixou a minha autoestima a níveis desprezíveis. Aquela mulher imensa, a quem atribuíam o título de professora, vestida de amarelo que mais parecia uma manga madura... aquelas risadas sarcásticas, estridentes... aquele momento de extrema solidão e nostalgia, causaram-me desarranjo interno, fogueamento no rosto, bambeza nas pernas... senti que algo dentro de mim pedia urgentemente para ser posto para fora! Jamais havia passado por situação semelhante! Nunca havia sentido tamanho desconforto... minha primeira lembrança naquele momento, foi minha mãe, a quem recorria sempre nas situações  complicadas, mas ela não estava ali...
No momento seguinte, que para mim, pareciam horas,  dei-me conta de que estava em outra sala de aula agora com outra professora, uma irmã, linda, sorridente, carinhosa que percebendo meu constrangimento levou-me até ao banheiro. Sentei-me no vaso, desfiz do incômodo e chorei... desabei no choro convulso que me doía o peito! Sentimentos exacerbados, confusos, experimentei naqueles minutos... raiva, ódio, rancor, desespero, medo, nostalgia, solidão e... saudades... muitas saudades... vontade de voltar para casa, para a fazenda para minha vidinha pacata sem ter que me defender para sobreviver ali naquele lugar horrível!Naquele momento precisava urgentemente de proteção, carinho... Em segundos percebi que eu tinha que crescer, resolver meus problemas imediatos, não havia ali ninguém por mim!
Extremamente sofrida e entregue aos meus sentimentos confusos, despertei para a realidade quando uma voz doce me chama pelo  nome. Neste momento parei de chorar, procurei me recompor, lavei o rosto. Quem me chamava era aquela irmã, a doce Irmã Maria do Sacrário,  a mesma que seria  minha professora! Pegou-me pela mão, assentou comigo em um banco do pátio e conversamos.
Mais calma, contei lhe o que havia acontecido  na sala ao lado quando fora enxotada porque não sabia fazer uma continha de dividir por três dígitos.
Percebi que ela ficou indignada com atitude antipedagógica da professora que incitou as alunas no que hoje chamamos bullying. Depois levou-me para a nova sala, apresentou-me para novas  colegas, levou-me até minha carteira onde iria assentar com outra aluna a Margarida. Grande Margarida!
Desta vez fui muito bem acolhida, minha coleguinha deu-me algumas instruções de como deveria me comportar no internato,  desenvolver o habito da autodefesa , para não ser passada “para traz.” Dividíamos a merenda, quando tínhamos, nos ajudávamos nos deveres de casa e nos defendíamos mutuamente das agressões de alunas maiores cheias de alto conceito de si mesmas.  
Nesses ambientes de reclusão a carência afetiva se confunde com o  instinto de sobrevivência gerando atitudes egoístas e violentas. Não raro se verem desentendimentos só para “marcar território” onde o mais fraco sempre cede para o mais forte, compreendendo humilhado, a sua real situação. No meu colégio não era diferente... Havia muita disputa!
Atrasei um ano no meu currículo escolar, em compensação ganhei  em conforto moral, ambiente, acolhimento e satisfação pessoal. Para mim era como se tivesse escapado do inferno e passado para o céu. Aos poucos fui aprendendo a viver, a me fazer respeitada sem apelar para violência, ou ignorância. Foram dez anos que apesar de tudo, valeram a pena!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O BULLYING




A lembrança da primeira professora para a maioria das pessoas é algo que enche o coração de ternura e saudade. Ela é aquela pessoa que preenche o vazio deixado pela ausência dos cuidados e carinho maternais, é quem assume com  muito amor a tarefa difícil de tornar agradável a adaptação da criança em seu novo espaço. A experiência de se ver só, fora do ambiente familiar, com estranhos, em nova realidade é para a criança uma mudança brusca que desestrutura seu íntimo, sentindo-se abandonada, perdida, desamparada. Essa criança precisa ter alguém maternal que a  acolha,  proteja e sobretudo que a faça sentir-se amada. 


Ao me encaminhar para a sala de aula, a primeira da minha vida, enchi-me de esperanças. Sonhava encontrar ali o suprimento de toda carinho e atenção que estava sentindo desde o dia em que chegara ao colégio no internato. Meu coração estava quase a explodir de alegria a me ver numa sala de aula de verdade com colegas, professora, os móveis adequados tudo aquilo que já fazia parte do meu imaginário mas que não conhecia de fato. Toda essa expectativa durou pouco. 

Uma imensa avalanche de decepção caiu sobre mim depois que me descobriram. Primeiro vieram as perguntas para sanar a curiosidade natural. Eu de pé na frente sob o olhar atento e crítico das colegas tinha que responder a muitas perguntas que eu nem sabia do que se tratava. Descobriram então que eu tinha vindo da roça e que era uma caipira! Tive que suportar os risinhos e cochichos maldosos... 

Com os nervos à flor da pele, maltratada intimamente, humilhada, fui submetida a um teste de avaliação, ali sem o menor preparo psicológico! Por sorte do azar, nada do que eu sabia foi arguido. Todo o conhecimento que eu tinha adquirido informalmente junto à minha mãe, era insuficiente para me qualificar.


Lembro-me que a professora tinha me dado um giz para que eu escrevesse no quadro negro uma frase para fazer a análise gramatical. Eu não conhecia giz não sabia como usa-lo naquele quadro enorme. Não tinha noção espacial porque só conhecia a louza, um quadro de uso individual onde  escrevíamos  com um  bastão da mesma pedra sobre o colo ou sobre a mesa. Essa  minha confusão gerou a pergunta: “você ao menos sabe escrever”? (ouvi risinhos abafados...) Com toda timidez balancei a cabeça em sinal positivo. “Então escreve!” Eu olhava para o giz, virava-o de um lado, do outro...nada. Eu não sabia como escrever com aquilo. Até que uma das colegas entrou para minha salvação: “professora, deixa eu escrever a frase para ela?”  


Nessa hora senti um tímido apoio, achei que aquela garota me inspirava confiança e cumplicidade. Entreguei-lhe o giz. Com desenvoltura ela escreveu no quadro a tal frase. Apesar do nervosismo, segui os seus movimentos, entendi que o quadro tinha aquelas dimensões  para que toda a sala pudesse ler e as letras deveriam ser proporcionais, pela mesma razão. Agora com o giz, a professora pediu-me que sublinhasse os verbos, passasse um círculo em volta dos substantivos um X nos pronomes... e assim por diante... Tudo feito achei que estava livre... Que nada! Agora veio o pior! 

Mandou que apagasse o quadro e ditou alguns números, dividido por... quando fiz um traço vertical de uns quarenta centímetros, as colegas começaram a rir. (A chave que eu sabia fazer era composta de um traço vertical e um horizontal partindo  dos primeiros 10 cm. ). Ditou: dois, sete, nove. Que maldade! Nunca havia feito uma divisão por três dígitos. Foi quando vi que a professora queria mesmo era me aniquilar! Vi  o seu sorriso de satisfação  e ouvi as gargalhadas  das colegas diante da minha  ignorância. 

Nessa hora ela mandou que eu pegasse minhas coisinhas e que saísse da sala dela, ela não tinha tempo para perder ensinando fazer continhas e que aquela sala não era para mim... Seu tom de voz estarrecedor  meteu-me medo! Constrangida, esmagada em meus profundos sentimentos,  sob o olhar crítico e debochado das colegas em gargalhadas, me encaminhei para a porta já aberta. Lá estava  ela com o braço direito e o indicador estirados mostrando-me a saída. A porta  ela gritou para a professora do segundo ano: “essa menina não está apta para o terceiro ano, vê se fica com ela, aqui ela não fica!”


Humilhada, com a autoestima lá em baixo, senti-me a última das criaturas, precisava que alguém que me  apoiasse, consolasse, mas de quem? Senti-me isolada, estava sozinha... Era motivo de chacota, de olhares debochados...

Experimentei todo o desprezo, humilhação e solidão que uma garotinha ingênua poderia sentir... Na verdade, só o fato de ser novata no colégio, não ter amigas e nem apoio, era para mim como se estivesse num isolamento total... foram os minutos mais longos da minha vida...eu queria sumir...voltar correndo para os braços de Mamãe...sentir o seu carinho, sua proteção!  
Não havia me preparado para uma situação como aquela! Foi constrangedor!

Hoje quando se falam em bullying, reporto a este dia fatídico em que fui agredida  moral e psicologicamente, motivando talvez a grande dificuldade que sempre carreguei com a matemática.