quinta-feira, 7 de junho de 2012

UMA RUDE LEMBRANÇA


O cotidiano na fazenda no meu tempo de criança é a imagem que, com o passar do tempo, foi se sedimentando para se transformar numa lembrança pura, doce, embora um tanto quanto rude como possa ser a vida no campo.
Preciso que se diga que sou a última de doze irmãos, entre os quais, três já haviam falecido quando eu nasci. Éramos quatro mulheres e cinco homens.
 Aos homens cabiam as funções externas da casa, a lida com o gado, os porcos e a lavoura. Às filhas, os trabalhos domésticos. Os meninos aprendiam com o papai desde a administração dos negócios, os truques de como comprar e vender, às pequenas tarefas como castrar uma porca ou colocar um bezerrinho recém-nascido para mamar.
Às meninas os trabalhos domésticos, o ponto do doce, do requeijão, como bater o creme de leite para fazer manteiga... os bordados delicados, ou movimentar o pedal da máquina de costura. De ver a mamãe fazer, acumulávamos a aprendizagem. Era assim que as moças se preparavam para o casamento.
Cresci na zona rural onde papai possuía uma fazenda, cuja maior produção era o cultivo de lavouras de café. Os cafezais se estendiam pelas encostas dos morros formando um imenso lençol de um verde escuro quase negro. Era um próspero negócio.
A região era famosa por ser propícia à cultura cafeeira.
A cafeicultura na segunda metade do século passado, era cultivada de forma rudimentar utilizando de forças braçais de empregados remunerados que chamávamos colonos. Estes moravam com suas famílias na colônia: uma fileira de casas simples, com paredes rebocadas, cobertura com telhas de barro e o piso de terra batida. Cada casa tinha dois quartos, sala e cozinha, onde um fogão à lenha servia a qualquer família que ali morasse.
Os colonos eram contratados para o trabalho nas lavouras e quase sempre chegavam de carro de bois, que papai mandava buscar onde estivessem morando. O contrato de serviço era informal bastando a palavra e os “assentamentos” que papai fazia em um caderno de capa dura. Ali era registrado o acerto de cada colono, as retiradas semanais e o salário. Sábado era o dia em que eles vinham pegar o adiantamento para as compras. Era quando encostavam a enxada, trocavam de roupa e rumavam para a venda junto com outros companheiros para irem se alegrar um pouco. Não era raro aquele que consumia todo o dinheiro em bebida e farra. Voltava pra casa sem nenhuma compra e caindo de bêbado. A mulher que se virasse pedindo emprestado algo com o que cozinhar com vizinhos, ou na fazenda como eles chamavam a casa dos patrões. Eram homens sem o mínimo senso de economia, objetividade e amor à família. Por isso, viviam sempre na extrema pobreza, baixíssima higiene e nenhum conforto. A grande maioria era analfabeta, e muitos nem documentos possuíam. Eram quase nômades. Mudavam-se para uma outra fazenda, já comprometidos com uma nova dívida: o pagamento da anterior.
Como as leis trabalhistas ainda não haviam chegado ao meio rural, cada fazendeiro entendia de empregar os próprios meios para se relacionar com os empregados. Muitas vezes eram relações desumanas, prepotentes, sem a menor compaixão. O empregador não admitia o menor prejuízo.
O meu pai era justo, enérgico, rigoroso e, às vezes, ríspido. Todos o temiam. Quando contrariado... sai de baixo, porque o tempo  fecha...
Tudo tinha que correr como ele queria e determinava. Era frequente ouvir sua voz alterada com algum dos colonos que não cumpria suas ordens ou que não fazia do modo como ele havia determinado. Não havia quem o contestasse.
A irritação de meu pai quando chegava ao ponto de esbravejar, me causava pânico! Eu sempre procurava algo útil pra fazer com medo que pudesse sobrar pra mim...
Nesse exato momento em que evoco essa lembrança, ainda posso experimentar o estranho sentimento que então se apossava de mim... frio na barriga, tremor nas pernas e o pulsar acelerado do coração.
Nada melhor que o tempo para reconstituir as marcas da vida!

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