O cotidiano
na fazenda no meu tempo de criança é a imagem que, com o passar do tempo, foi
se sedimentando para se transformar numa lembrança pura, doce, embora um tanto
quanto rude como possa ser a vida no campo.
Preciso que
se diga que sou a última de doze irmãos, entre os quais, três já haviam falecido
quando eu nasci. Éramos quatro mulheres e cinco homens.
Aos homens cabiam as funções externas da casa,
a lida com o gado, os porcos e a lavoura. Às filhas, os trabalhos domésticos.
Os meninos aprendiam com o papai desde a administração dos negócios, os truques
de como comprar e vender, às pequenas tarefas como castrar uma porca ou colocar
um bezerrinho recém-nascido para mamar.
Às meninas
os trabalhos domésticos, o ponto do doce, do requeijão, como bater o creme de
leite para fazer manteiga... os bordados delicados, ou movimentar o pedal da
máquina de costura. De ver a mamãe fazer, acumulávamos a aprendizagem. Era
assim que as moças se preparavam para o casamento.
Cresci na
zona rural onde papai possuía uma fazenda, cuja maior produção era o cultivo de
lavouras de café. Os cafezais se estendiam pelas encostas dos morros formando
um imenso lençol de um verde escuro quase negro. Era um próspero negócio.
A região
era famosa por ser propícia à cultura cafeeira.
A
cafeicultura na segunda metade do século passado, era cultivada de forma
rudimentar utilizando de forças braçais de empregados remunerados que
chamávamos colonos. Estes moravam com suas famílias na colônia: uma fileira de
casas simples, com paredes rebocadas, cobertura com telhas de barro e o piso de
terra batida. Cada casa tinha dois quartos, sala e cozinha, onde um fogão à
lenha servia a qualquer família que ali morasse.
Os colonos
eram contratados para o trabalho nas lavouras e quase sempre chegavam de carro
de bois, que papai mandava buscar onde estivessem morando. O contrato de
serviço era informal bastando a palavra e os “assentamentos” que papai fazia em
um caderno de capa dura. Ali era registrado o acerto de cada colono, as
retiradas semanais e o salário. Sábado era o dia em que eles vinham pegar o adiantamento
para as compras. Era quando encostavam a enxada, trocavam de roupa e rumavam
para a venda junto com outros companheiros para irem se alegrar um pouco. Não
era raro aquele que consumia todo o dinheiro em bebida e farra. Voltava pra
casa sem nenhuma compra e caindo de bêbado. A mulher que se virasse pedindo
emprestado algo com o que cozinhar com vizinhos, ou na fazenda como eles
chamavam a casa dos patrões. Eram homens sem o mínimo senso de economia,
objetividade e amor à família. Por isso, viviam sempre na extrema pobreza,
baixíssima higiene e nenhum conforto. A grande maioria era analfabeta, e muitos
nem documentos possuíam. Eram quase nômades. Mudavam-se para uma outra fazenda,
já comprometidos com uma nova dívida: o pagamento da anterior.
Como as
leis trabalhistas ainda não haviam chegado ao meio rural, cada fazendeiro
entendia de empregar os próprios meios para se relacionar com os empregados.
Muitas vezes eram relações desumanas, prepotentes, sem a menor compaixão. O
empregador não admitia o menor prejuízo.
O meu pai era
justo, enérgico, rigoroso e, às vezes, ríspido. Todos o temiam. Quando contrariado...
sai de baixo, porque o tempo fecha...
Tudo tinha
que correr como ele queria e determinava. Era frequente ouvir sua voz alterada
com algum dos colonos que não cumpria suas ordens ou que não fazia do modo como
ele havia determinado. Não havia quem o contestasse.
A irritação
de meu pai quando chegava ao ponto de esbravejar, me causava pânico! Eu sempre
procurava algo útil pra fazer com medo que pudesse sobrar pra mim...
Nesse exato
momento em que evoco essa lembrança, ainda posso experimentar o estranho
sentimento que então se apossava de mim... frio na barriga, tremor nas pernas e
o pulsar acelerado do coração.
Nada melhor
que o tempo para reconstituir as marcas da vida!
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