Eu
era muito pequena, não sei exatamente quantos anos eu tinha: três, quatro... Só
sei que são as primeiras lembranças gravadas
na minha memória.
As pessoas, ou melhor, os adultos da minha
casa falavam em vovó, Passos (cidade), viagem, aprontar. Alguém desamassava
roupa com ferro à brasa, meu pai gritava para que tivéssemos pressa... Corre
pra cá, corre pra lá, todos se arrumando
com muita afobação.Tomar banho, trocar de roupa, preparar uma bagagem com
poucas coisas; a viagem seria curta.
Sempre
tinha uma matula; papai e mamãe eram prevenidos, caso o carro encravasse e
tivéssemos que passar a noite no Ford 29, ou ao relento.
Por
que será que todo mundo corria tanto? Por que tanta seriedade? Ninguém parecia
feliz por estar se preparando para uma viagem... Ninguém me falava nada... Talvez
porque eu fosse a menor da casa, achavam que não me deviam explicações.
Chegamos
ao destino sem atropelos.
A
casa era enorme, portas de madeira, muitas portas, todas fechadas em duas
folhas, muito altas, sala ampla, muitas pessoas...
Fechaduras
e chaves impressionantemente grandes. O piso de madeira (tábua corrida), peças
irregulares no comprimento e largura, mal colocadas umas ao lado das outras,
deixava visualizar que havia algo embaixo daquele assoalho.
Muitas
pessoas sisudas... Umas choravam baixinho, eu agarrada na mão da mamãe queria
mais era fugir daquela gente que ao me ver,
beliscavam minhas bochechas exclamando: que gracinha, como ela cresceu! É
horrível ser criança, as pessoas batendo na
cabeça e fazendo os comentários tolos de sempre.
Até
então eu estava boiando... não entendia o que se passava... não conhecia
ninguém, mas, todos me conheciam, sabiam meu nome... já estava começando a me
encher daquela situação quando olhei para o assoalho e vi algo se mover em
baixo. A curiosidade tomou conta de mim, me abaixei tentando ver... Aquilo que
se agitava lá embaixo era algo estranho, mas não me metia medo. Comecei então a
sondar o ambiente procurando como poderia chegar àquele lugar.
Por
entre as pernas daquela aglomeração de pessoas, consegui visualizar um vai-vem
de mulheres carregando bandejas copos e jarras.
Desvencilhei-me
daquele aglomerado de pessoas e esgueirando-me pela parede para que ninguém me
atropelasse, consegui alcançar uma movimentada porta que dava para um corredor
ladeado de portas fechadas. Sorrateiramente fui andando sempre encostada à parede para não ser
atropelada. Sabia que ia encontrar
aquele lugar! Ao me afastar, apesar da
pouca idade, sabia que mamãe iria se preocupar. Mas, a curiosidade era maior! Consegui
chegar à cozinha e ali vi outra porta. Esta sim estava aberta por onde se passava
para a área de serviços.Em frente, uma enorme escadaria que dava para o
quintal. Desci os degraus um a um, com muito medo de ser pega por alguém que já
tivesse dado por minha falta.
Quando
cheguei em baixo, olhei para cima e me deu medo, pensar que teria que subir
aqueles degraus todos sozinha...
Comecei
a chorar e nisso apareceu uma menina bem maior que eu, me acalmou e me levou...
para onde??? Para aquele lugar, aquele que tanto me atraia.
A
mocinha me inspirou confiança, pegou na minha mão e me levou para o porão;
tratava-me com intimidade porque ela me conhecia.
O
porão era um daqueles lugares fascinantes cheios de velharias, poeira e teias
de aranha, uma grande novidade para mim. A garota andava por ali com
desenvoltura mostrando que conhecia bem todas as passagens. Mostrava–me aqui e
ali os objetos e móveis, o “lugar ideal para se brincar de casinha.” Ora, eu
nem sabia o que era “brincar de casinha.”
Chegamos
então na “cozinha”. Ali havia uma mesa, sobre a qual uma rosca que ela acabara
de amassar.
Nesse
momento veio até as minhas narinas o cheiro característico de excremento de
porco. Na minha mente infantil fiz a
ligação olfativa com a visual. Tudo cresceu na minha cabecinha... Via tal rosca
assada, servida a mim, foi quando tomei a decisão desesperada de fugir dali
procurando a mamãe.
Nessas
alturas da história, já tinha muita gente à minha procura. O sepultamento da vovó seria logo em
seguida... E eu continuava sem entender o que estava acontecendo... O meu mundo girava à parte!
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